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LIVRO - LANÇAMENTOS
Cony faz caso de amor sem palavras
MARCELO RUBENS PAIVA
especial para a Folha
Um escritor deve estar afinado
com o seu editor, esta ponte entre a
solidão, o ato insano de escrever e
o mercado? O escritor carioca Carlos Heitor Cony, 73, está bem afinado.
Recebeu em abril a encomenda
(ou sugestão) de escrever um livro
a ser lançado nas duas maiores feiras de livro brasileiras, a do Rio de
Janeiro e a de São Paulo, que acontecem agora, e, em 11 dias, no período morno do Natal e réveillon,
escreveu o romance (ou novela)
"Romance sem Palavras".
O autor, membro do Conselho
Editorial da Folha, já vai avisando,
diante do paradoxo que o título gera, que o romance em questão não
é o gênero literário, mas um relacionamento amoroso. É um caso
de amor sem palavras. Afirma, ainda, que o que escreveu nem é um
romance, mas uma novela.
Novela ou romance? Foram os
teóricos ingleses que procuraram
as características que distanciam
um gênero do outro. Novela, definiram, com o carimbo de aprovação do escritor E.M. Foster e seu
grupo, é um romance mais curto,
com uma trama mais concentrada
e personagens escassos.
Diferente, vírgula
Novela seria a ilha perdida entre
o romance e o conto. A crítica literária brasileira nunca deu bola pra
essa definição. Fez bem a crítica
brasileira, em não perder tempo
com a meticulosidade do pensamento crítico inglês. Mas isso já é
uma outra conversa.
Depois dos premiados "Quase
Memória" (1995), "O Piano e a Orquestra" (1996), "A Casa do Poeta
Trágico" (1997) e de ver relançados
seus primeiros romances, como
"O Ventre" (1958) e "Matéria de
Memória" (1962), Cony entrega ao
leitor um livro bem diferente dos
anteriores. Diferente, vírgula.
O triângulo amoroso Irene, Jorge
Marcos e Beto gira, como um pião,
dentro da trama, limando, com
suas arestas, os caminhos imprevisíveis. A novidade é o tema.
Biografia possível
Cony fala de militância política,
luta armada, prisão, tortura, clandestinidade, ações políticas, eventos pouco eventuais no começo da
década de 70. O ponto de partida é
o susto que Beto, um ex-professor
de história, leva ao ver jogado, em
sua cela, a B17, um preso torturado. Beto limpa o rosto coberto de
sangue de seu desconhecido companheiro de cela.
Essa imagem se repete em todo o
romance. Revela-se que Beto, na
verdade, é um dos muitos militantes casuais da luta armada. E que o
preso torturado é Jorge Marcos,
um padre engajado. Uma mulher,
Irene, aflora entre eles.
Anos depois, eles se reencontram
em Angra. São burgueses conformados, diante do mar, que falam
de pesca, barcos, literatura. "Todo
romance é uma biografia possível
do autor", afirma Beto.
Verruga da memória
A imagem de um preso torturado sendo jogado em sua cela aconteceu, de fato, com o autor, em
uma de suas seis prisões, durante o
regime militar. Tal imagem reacendeu no dia em que o editor encomendou um novo romance.
As lembranças do cheiro de um
capuz, da sensação de estar sendo
levado, sem poder ver o caminho,
da cela, das missões clandestinas,
aparecem na ficção, mas são verrugas da memória do autor.
É o que Carlos Heitor Cony, que
atualmente escreve "Missa pro Papa Marcello", um "romance complicado", segundo suas palavras,
conta, em entrevista por telefone,
do Rio de Janeiro.
Folha - Todo romance é uma biografia possível do autor?
Carlos Heitor Cony - Essa é uma
frase meio banal, que usei no livro.
É verdade. Um escritor sempre escreve o que pensou ter vivido.
Folha - O tema luta armada é inédito em seus livros?
Cony - "A Travessia", de 1966,
portanto antes do AI-5, procurou
analisar a opção da luta armada
como opção de uma geração. Mas,
em 1966, quase nada havia ainda
acontecido. Fiz um livro crítico,
sobre essa vontade de ser heróico.
Folha - Qual foi a sua opção, na
época?
Cony - Nos anos 60, ou partia-se
para o paz-e-amor ou para a guerra. Eu não era uma coisa nem outra, mas as pessoas que eu conhecia, minhas namoradas, tinham essa opção. Eu ficava sobrando no
mundo. Não tinha apelo para ser
hippie ou guerrilheiro. Nem idade.
Eu não tinha apelo para a fuga da
realidade.
Folha - Quantas vezes você foi
preso?
Cony - Entre 1965 e 1972, fui preso seis vezes. Algumas prisões foram rápidas, duravam dez dias, e
outras mais longas, que duravam
60 dias. Vi tortura, mas nunca fui
torturado. A primeira cena do livro "Romance Sem Palavras" realmente aconteceu. Um sujeito muito torturado foi jogado na minha
cela. Vomitei quando o vi. Nasceu,
desse fato, minha incompreensão
da época.
Folha - Quem era esse sujeito?
Cony - Era um bancário. Eu não o
conhecia e cheguei a reencontrá-lo
depois. Limpei o sangue, procurei
ajudá-lo. Eu era apenas um jornalista que combatia o regime escrevendo para jornais. Fui a várias
reuniões com pessoas envolvidas
com a guerrilha, dei palestras em
faculdades, cheguei a entregar documentos secretos, material de
propaganda, em encontros marcados com pessoas clandestinas. Fui
a Cuba, em 1968, mas nunca mergulhei nessa opção.
Folha - Por que 30 anos depois
resolveu escrever sobre o período?
Cony - A época está sendo revista. E ainda há a mesma confusão e
espanto. No fundo, eu queria escrever sobre o apelo dessa turma
que, hoje em dia, tratou de ganhar
a vida. Essa causa não deixou nada.
Folha - Por que você foi preso
tantas vezes?
Cony - Eu era do grupo da editora
Civilização Brasileira, em que se
aglutinou a primeira resistência
contra o regime militar. Fui um
combatente casual. Sempre tive
desprezo pelo fato político. Era um
alienado. Meus livros eram alienados e continuam sendo.
Mas não sou um verme. Uma vez
fui preso porque vaiamos, com
Glauber Rocha e Antonio Callado,
o ex-presidente Castello Branco,
no hotel Glória (no Rio de Janeiro).
Fiquei perto dele. Olhei no seu
olho e xinguei-o de "filho da puta".
Folha - Qual a herança da época?
Cony - Foi uma fase heróica. As
pessoas arriscaram suas vidas. Tenho amigos que até hoje não se recuperaram da tortura que sofreram. Mas o pessoal se acomodou.
Guerrilheiros viraram comerciantes. Não temos, hoje, um motivo de
partir para uma aventura. O tempo
passou, e essa turma se transformou em burgueses conformados.
E a vida ficou sem sentido para todo mundo. Aceitamos a vida sem
sentido.
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