São Paulo, Sábado, 24 de Abril de 1999
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RESENHA DA SEMANA
O bolor do amor

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Augusto Abelaira gosta de citar a máxima do biólogo inglês T.H. Huxley (1825-95): "Ponha um macaco na frente de uma máquina de escrever e ao fim de milhares de anos ele escreverá o "Hamlet'". Não é à toa que tenha dado a um de seus livros, de 1975, o título "O Único Animal Que...?", para falar do homem, evidentemente.
Hoje, nada pode divertir mais esse escritor português nascido em 1926 -seu romance "Bolor" (1968) está sendo finalmente publicado no Brasil, 30 anos depois- do que a leitura de textos de divulgação científica. "Já fui um grande leitor de romances. Hoje, eles me divertem bem menos. As novidades que os romances podem trazer são muito menores que as da etologia, da física, da biologia, da astronomia", diz.
Quando lê literatura, Abelaira em geral volta aos mesmos livros. "Tenho o hábito de sublinhá-los. Quando releio "Os Irmãos Karamazov", percebo que o sublinho de uma forma diferente. Se usasse canetas de cores diferentes, em vez de lápis, teria ali a história da evolução do meu próprio espírito", diz, como se falasse de um método científico, só que rindo.
Daí "Bolor" poder parecer para muitos um livro datado. Por ter sido escrito com o espírito de um tempo em que os romances não só faziam rir, mas podiam trazer tantas novidades quanto a biologia e a astronomia. O bolor desse pequeno romance de Abelaira serve hoje de antídoto, de antibiótico, contra uma forma mais imediatista, e sobretudo menos inteligente, de vida e de leitura.
Pela opacidade do texto, que não dá a ver nada de imediato, mas cria uma catarata de palavras, uma membrana traiçoeira e lúdica entre a vista e o mundo, "Bolor" pode parecer também, para os mais impacientes e de visão mais estreita, um livro que fala muito e diz pouco. Porque é resultado de uma concepção, hoje em muito esquecida e desprezada, que tomava a narrativa literária mais como forma de tecer uma rede múltipla de sentidos do que apenas "contar bem" uma história -embora também conte, e bastante bem.
"Bolor" é escrito na forma de um diário. Primeiro, um homem parece escrever seus dias num caderno íntimo: fala da mulher, da ex-mulher morta, de um amigo. Depois, é a mulher que desanda a escrever no diário do marido, intrometida, a responder-lhe sobre assuntos que os dois não ousam levantar na vida cotidiana, quando estão um na frente do outro. O diário passa a ser, então, um diálogo diferido entre o dois, que continuam a fingir que o ignoram em suas conversas diárias.
Já seria bastante estranho se não fosse, de repente, um novo dado que muda o sentido de tudo: não era o homem que escrevia o diário e sim a mulher, desde o início, pondo-se na pele do marido, e construindo um diálogo que só existia na cabeça dela. E, de repente, percebe-se que o autor do diário talvez não seja a mulher, mas o amigo do marido, e amante dela, pondo-se na pele de ambos.
Afinal, pergunta o leitor, é o homem que escreve no lugar da mulher? Ou a mulher que escreve no lugar do amante? Ou o homem no lugar do amigo e amante da mulher? Ou a mulher que escreve como se fosse o marido fingindo ser a mulher? E assim por diante, num labirinto que coloca em questão não apenas a identidade e a autoria, uns fingindo ser os outros, mas a cronologia do tempo.
"Bolor" dá a entender, nesse jogo de identidades, que toda relação é feita de camadas interpostas. A opacidade entre os amantes ganha uma analogia na relação entre autor e leitor. Ninguém mais sabe quem é quem nesse jogo de invenção que é a literatura.
Não é preciso ir muito longe para perceber que "Bolor" é um livro satírico sobre o amor -basta ler o poema de Carlos de Oliveira estampado como epígrafe, que já anuncia o sarcasmo dessa rima. Os personagens de Abelaira oscilam entre concluir que o amor é uma estranha invenção ou mero costume e se debatem com a pergunta mais fatal, mas não menos humorada: "És insubstituível?".
Uma das qualidades da inteligência é permitir a quem a pratica rir de si mesmo e da sua condição. Quando era jornalista, Abelaira foi entrevistar Otelo de Carvalho, chefe das tropas portuguesas e líder da revolução: "Quando comecei a fazer a entrevista, esta coisa falhou", diz, apontando para o gravador. O comandante-chefe das Forças Armadas portuguesas, alegando alguma habilidade para o negócio, sentou-se no chão com o escritor e começou a tentar consertar o aparelho.
"E consertou!", exclama Abelaira. "O comnadante-chefe das Forças Armadas inglês, alemão ou francês nunca estaria sentado no chão a tentar consertar o gravador estragado de um jornalista imbecil. Havia uma diferença substancial. Tinha qualquer coisa de simbólico. E é em parte graças à capacidade de ver essa "diferença substancial", e de rir dela, que Abelaira escreveu um dos romances mais inteligentes da literatura portuguesa contemporânea.

Livro: Bolor Autor: Augusto Abelaira Lançamento: Lacerda Editores Quanto: R$ 22 (162 págs.)

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