São Paulo, sábado, 24 de maio de 2008

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Romance/ "Viagem ao Fundo da Sala"

Com um raro tom de humor, Tibor Fischer remete a Martin Amis

História de designer gráfica que não sai de casa vai além de suposto retrato de geração cujas experiências são virtuais

MICHEL LAUB
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não são poucas as chances de um romance como "Viagem ao Fundo da Sala", do inglês Tibor Fischer, sobre uma designer gráfica que passa os dias sem sair de casa em Londres, esgotar-se em seu próprio argumento. Isso porque, desde "Viagem à Roda do Meu Quarto" (1794), de Xavier de Maistre, tem sido difícil levar adiante histórias passadas em cenários tão limitados. Ou elas se transformam em jornadas introspectivas de autoconhecimento -material não muito animador, como se sabe-, ou servem apenas como base para reminiscências, por exemplo, o que desloca a ação para o plano externo e pode deixar o mote da trama com aparência forçada, artificial.
Fischer decide se aventurar pela segunda via e, de cara, o suposto retrato de uma geração cujas experiências são quase todas virtuais vai por água abaixo: na verdade, o livro é uma coletânea de casos contados por pessoas com quem a protagonista cruzou em viagens, empregos e eventuais encontros no seu prédio, memórias essas desencadeadas quando começam a chegar pelo correio cartas de um antigo namorado.
Se está sempre próxima de uma certa facilidade, a opção também traz algumas vantagens. A primeira é que, convenhamos, o mundo anda um tanto exausto de sociologia ficcional sobre pizzas ruins por telefone, séries ruins de televisão a cabo e sites ruins de pornografia. A segunda, mais importante, é que na voz desses outros personagens o livro acaba encontrando seu raro tom de humor.

Alvos
Os alvos de Fischer são ilimitados: velhos, mendigos, strippers, imigrantes, vendedores de carros, assassinos de guerra, todos se deliciam descrevendo um tempo em que a regra é pisar na cabeça do próximo, e depois rir muito a respeito. "Ele queria chegar lá embaixo depressa. E chegou lá embaixo depressa", diz um instrutor de mergulho sobre um japonês que se afogou por excesso de peso em seu equipamento.
"Podemos passar a vida inteira fazendo favores, mas não vamos conseguir nem um copo de água ou cinco minutos de alívio numa sinusite por causa disso", reflete a narradora ao negar ajuda a um porteiro de boate.
Talvez não sejam trechos notáveis isoladamente, mas seu acúmulo até certo ponto impressionante, a cada página e a cada parágrafo, remete à exuberância anárquica dos romances de seu conterrâneo Martin Amis, escritos na década de 80.
Não por acaso, Amis andou sendo atacado pelo autor de "Viagem ao Fundo da Sala": como um pupilo que precisa se libertar da influência de seu mestre, Tibor Fischer é o primeiro a saber de onde possivelmente saiu, com as devidas diferenças de temas e linguagem, seu senso afiado de crueldade e cinismo. O que, numa literatura como a atual, tão preocupada em não ferir uma lista interminável de suscetibilidades, é um sopro de vida sempre muito bem-vindo.


MICHEL LAUB é autor dos romances "Longe da Água" e "O Segundo Tempo", ambos da Companhia das Letras

VIAGEM AO FUNDO DA SALA
Autor:
Tibor Fischer
Tradução: Paulo Reis
Editora: Rocco
Quanto: R$ 38,50 (256 págs.)
Avaliação: bom


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