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OPINIÃO
Festival argentino consagra vanguarda da técnica de reciclagem de imagens
ALAN PAULS
ESPECIAL PARA A FOLHA
O filme mais radical do último Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires (Bafici) foi também um dos mais curtos e baratos da história do evento. Seu título é "Wound Footage" (algo como "gravação ferida"), de 2009, e pode ser visto em http://vimeo. com/4741823.
Seu diretor, o alemão Thorsten Fleisch, reproduziu em vídeo digital os seis minutos arrepiantes de um rolo de super-8 que encontrou em 2003, provavelmente de um turista anônimo.
O que se vê está em cores, mas não diz muito: uma praça, carros passando, um porto. A imagem está de cabeça para baixo, o som é ensurdecedor e algo impede que o filme seja visto. Isso porque "Wound Footage" é resultado de duas feridas: as que o filme apresentava quando Fleisch o encontrou (manchas, riscos, rasgos) e as que ele lhe inflige ao encontrá-lo (como bolhas vistosas que se formam no celuloide).
A rigor, o filme de Fleisch foi só a ponta do iceberg e virou a estrela do festival, que dedicou uma seção e uma antologia de ensaios críticos ao "found footage" (FF, gravações achadas), parentes pobres dos "ready-mades" de Duchamp ou dos "objets trouvés" dos surrealistas.
São filmes feitos exclusivamente com materiais filmados por outros. Seus diretores se dão a um luxo excepcional: prescindir de câmeras, equipes técnicas e até suportes. Não criam um único plano novo, não inventam nada. Mas fazem tudo sozinhos. Não acreditam demais em criar, e sim em intervir.
Existem tantas categorias de "footage finders" (descobridores de gravações) quanto de artistas. O último Bafici permitiu avaliar até que ponto essa prática marginal começa a sair dos guetos e a afetar os campos convencionais do cinema de ficção.
Autor de clássicos como "Human Remains" ou "Phantom Limb", Jay Rosenblatt, homenageado pelo Bafici, é o antólogo por excelência: reflete sobre questões como o suicídio e a homofobia, atravessando a selva de um arquivo audiovisual prodigioso, fazendo falar imagens de TV, documentários médicos e comerciais.
O "found footage" está em todo lugar. Ou, pelo menos, começamos a enxergá-lo assim. Aparece como enigma em "Fascinación" ("Running Dog", de Don DeLillo) e encarna a poética dos achados, das apropriações e das fraudes sem as quais "A Bruxa de Blair" seria impensável.
E o FF é como um aleph vanguardista: condensa todas as operações que sobressaltaram a arte no século 20, desde a colagem surrealista até o desvio do situacionismo, passando pela montagem eisensteiniana, a citação à moda de Brecht e os gestos de descontextualização do "apropriacionismo" contemporâneo.
Quem poderia imaginar prática mais atual? Anonimato, economia, recomposição e revitalização do que já existe: os valores do FF parecem ser os valores oficiais de uma sociedade atormentada por duas obsessões: a sustentabilidade (não produzir: fazer com o que já existe) e o registro (que não é a forma que damos ao passado, mas a forma de nossa vida presente, onde tudo está disponível a todos, o tempo todo).
Tradução CLARA ALLAIN
ALAN PAULS é escritor argentino, autor de "O Passado" (Cosac Naify), entre outros
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