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São Paulo, terça-feira, 24 de junho de 2003

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Dogma zona leste

Divulgação
A atriz Sílvia Lourenço em cena de "Contra Todos", longa-metragem de estréia de Roberto Moreira, rodado na zona leste de São Paulo



"Contra Todos", de Roberto Moreira, rodado no bairro de Aricanduva, radicaliza brutalismo do novo cinema paulista; com atores desconhecidos, o filme tem todas as suas cenas improvisadas


JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Quem se impressionou com a vitalidade de filmes como "Um Céu de Estrelas", "Bicho de Sete Cabeças" e "O Invasor" não perde por esperar. Vem aí "Contra Todos", longa de estréia de Roberto Moreira, que radicaliza o "novo realismo" do cinema paulista.
O filme retrata a violenta desagregação de uma família de classe média baixa e foi todo rodado em vídeo digital, com câmera na mão, em Aricanduva, na periferia leste de São Paulo.
Para não estragar a surpresa, só se pode dizer que a história envolve matadores de aluguel, cultos evangélicos, adultério, estupro e um bocado de sangue.
Mas essa desgraceira toda foi filmada, paradoxalmente, com leveza, humor e até elegância.
A Folha teve acesso com exclusividade a "Contra Todos", que está agora em fase de finalização. Falta colocar a música (de Livio Tragtenberg), fazer a mixagem e, posteriormente, a transferência do suporte digital para a película cinematográfica. O filme fica pronto no segundo semestre.
O elenco é formado basicamente por atores desconhecidos, escolhidos entre 120 candidatos. Os únicos relativamente famosos são Leona Cavalli e Ailton Graça (o Majestade de "Carandiru").
"Optei por rostos que o público não conhecia. Além disso, queria um elenco que se entregasse de corpo e alma ao projeto", diz Moreira, 42, que realizou anteriormente curtas como "Princesa Radar" e "O Cão Louco Mário Pedrosa" e fez um estágio na Itália, na Fabrica, instituto de pesquisas em comunicação mantido pela Benetton.
A naturalidade das interpretações, que é o que mais impressiona em "Contra Todos", foi conseguida com base num trabalho ousado de preparação de atores, comandado por Sérgio Penna, que também preparou os elencos de "Carandiru" e "Bicho de Sete Cabeças".
Só na véspera das filmagens os atores receberam o roteiro, mas sem diálogos. Todas as cenas foram improvisadas, e os diálogos, criados pelos próprios atores.
Isso só foi possível graças à construção rigorosa do roteiro, que previa a narração a partir de vários pontos de vista, e à colaboração decisiva do diretor de fotografia e operador de câmera Adrian Cooper.
Inglês radicado no Brasil, Cooper assina a direção de arte de filmes como "Memórias Póstumas", "Uma Vida em Segredo" e "Desmundo" e a fotografia de "Fé" e "No Rio das Amazonas", entre muitos outros.
"Adrian e eu discutíamos diariamente o estilo da decupagem. Queríamos muita mobilidade de câmera e uma luz supersimples, para dar prioridade à expressão dos atores", resume o diretor.
O despojamento formal buscado por Moreira lembra os preceitos do Dogma 95, movimento criado por cineastas dinamarqueses. Uma obra do movimento -"Festa de Família", de Thomas Vinterberg"- foi uma das referências que o cineasta teve em mente ao filmar "Contra Todos". A outra foi "Faces", de John Cassavettes.
Ao se aproximar de seus personagens sem fazer nenhum julgamento moral, Moreira procurou retratar uma situação social sem lei e sem Estado, em que prevalece a "sociabilidade primária, ditada por impulsos imediatos e carências inadiáveis".
Originalmente, o filme deveria se chamar "Deus contra Todos", mas o diretor considerou que "havia muito Deus por aí". Referia-se a títulos recentes do cinema brasileiro, como "Cidade de Deus", "Deus É Brasileiro" e "Seja o que Deus Quiser".
"Além disso, o que está contra os personagens pode não ser Deus, mas o acaso, ou simplesmente o mundo", afirma Roberto Moreira.


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