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São Paulo, terça-feira, 24 de junho de 2003

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BERNARDO CARVALHO

O mundo em formol

Num texto muito conhecido e citado, o crítico de cinema André Bazin faz uma "história psicológica" das artes como um esforço imaginário do homem para vencer a morte e o tempo, tentando "salvar o ser pela aparência". Bazin parte da múmia do Egito antigo, vista como "a primeira estátua", para terminar no cinema: "O filme já não se contenta em conservar o objeto envolto no seu instante como, no âmbar, os corpos intactos de insetos de uma era passada (...). Pela primeira vez, a imagem das coisas é também a da sua duração, como uma múmia da transição".
O cinema preserva a imagem do que já não existe, em movimento. Desse ponto de vista, todo filme que fala da morte é um pleonasmo. De alguma forma, passa a ser metalinguagem. "Taurus", de Aleksandr Sokúrov, por exemplo, em cartaz em São Paulo, é o cinema a se representar, uma alegoria de si mesmo. O filme encena os últimos dias de Lênin moribundo, depois de sofrer um derrame, debatendo-se contra a morte, preocupado em saber se o sol continuará se levantando quando ele já não estiver entre os vivos.
"Taurus" (2001) é o segundo de uma série de quatro filmes que o diretor russo pretende fazer sobre líderes e ditadores do século 20, e que começou com "Moloch" (1999), uma encenação de Hitler na intimidade, recolhido com Eva Braun em Keistenhaus, nos Alpes alemães. Para reforçar ainda mais a impressão metalinguística, os personagens de "Taurus" evoluem como se estivessem dentro de um vidro de formol e já não passassem de corpos ou órgãos mortos. Uma luz azul-esverdeada banha tudo e todos, do quarto em que o líder espera pela morte à paisagem em torno da propriedade à qual ele está confinado.
O que mais salta aos olhos nessa representação é a dificuldade dos movimentos. É também o que expõe o absurdo de tudo. Os personagens mal conseguem andar, caem uns por cima dos outros. A mulher do líder moribundo se arrasta na cama, sobre o marido, arrancando gemidos do doente. Quando o casal é levado para passear no campo, mais parecem "dois corpos de mãos dadas". São mortos-vivos representando.
Mas o que significa filmar Lênin à morte? "Taurus" não é certamente apenas uma ironia alegórica do fracasso do comunismo. O filme não se contenta com a facilidade de uma constatação póstuma. Aqui, a alegoria histórica é um pastelão em que os personagens se arrastam e resmungam sem a agilidade característica dos atores de pastelão. Uma comédia com paralisia.
Não há dramaturgia nem diálogos propriamente ditos. Quando vai visitá-los, Stálin só resmunga e faz algumas caretas, como um ator do cinema mudo. O médico diz a Lênin: "Como eu gostaria de ver o seu cérebro. Você é o nosso atleta intelectual". E, no entanto, o doente já não consegue multiplicar 17 por 22 e passa todo o filme (seus últimos dias) tentando fazer essa conta, em vão.
O tempo dramático se arrasta como os protagonistas, como se também fosse conservado em formol. Lênin e a mulher são como personagens de Beckett, velhos comediantes paralisados. Estão sob observação. Há sempre alguém à distância ou escondido a observá-los. Enquanto o líder moribundo se debate com a aritmética mais elementar, o médico pensa: "Assim que ele morrer, vão me dar um tiro". E Lênin, sem conseguir chegar a nenhum resultado, olha para o médico e pensa: "No que será que ele está pensando?", como se o formol que os envolvesse também os impedisse de qualquer tipo de comunicação ou de raciocínio mais elaborado.
Bazin dizia sobre "Ordet" (1955), a obra-prima do cineasta dinamarquês Carl Dreyer, que nunca nenhum filme tinha chegado tão perto da morte. Em "Ordet", sob uma ótica em tudo o mais naturalista e prosaica (e por isso tão mais inesperada), há uma ressurreição. Uma mulher volta da morte, como que por milagre. A cena é o verdadeiro pleonasmo, pois representa e expõe a ilusão que é o próprio cinema, ao dar movimento à imagem dos mortos. O filme é tão mais genial por mostrar ao espectador, em toda a sua maravilha e em todo o seu absurdo, aquilo que no fundo ele veio procurar quando entrou na sala de cinema.
Segundo Bazin, a fotografia liberou a pintura da busca de um falso realismo, "psicológico" e não estético, que a assombrava desde sempre. Com o surgimento da fotografia, a pintura já não precisava tentar "salvar o ser pela aparência". Por sua vez, um fotógrafo como o americano Andres Serrano, ao fazer uma série de retratos no necrotério, em 1992, subverteu a função original da fotografia de preservar a imagem dos vivos. Ao usar cadáveres como modelos, ele liberou ironicamente a fotografia da sua função ontológica, voltando-a para a pintura. E muitas dessas imagens da morgue remetem de fato a pintores como Bellini e Caravaggio.
O que Sokúrov, Dreyer e Serrano repetem, cada um a sua maneira, é que o verdadeiro realismo não é a busca da semelhança, a ilusão das formas, mas, como dizia Bazin, "a necessidade de exprimir a significação ao mesmo tempo concreta e essencial do mundo (...), a expressão de realidades espirituais em que o modelo se encontra transcendido pelo simbolismo das formas". Uma idéia simples que os oportunistas de hoje procuram esquecer.


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