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FERREIRA GULLAR
Jogos de azar
A bola pode cair ao alcance deste ou daquele jogador e, dependendo da sorte, será gol ou não
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COM UM pouco de exagero, costumo dizer que todo jogo é de
azar. Falo assim referindo-me ao futebol que, ao contrário da
roleta ou da loteria, implica tática e
estratégia, sem falar no principal,
que é o talento e a habilidade dos jogadores. Apesar disso, não consegue
eliminar o azar, isto é, o acaso.
E já que falamos em acaso, vale
lembrar que, em francês, "acaso" escreve-se "hasard", como no célebre
verso de Mallarmé, que diz: "um lance de dados jamais eliminará o acaso". Ele está, no fundo, referindo-se
ao fazer do poema que, em que pese
a mestria e lucidez do poeta, está
ainda assim sujeito ao azar, ou seja,
ao acaso.
Se no poema é assim, imagina numa partida de futebol, que envolve
22 jogadores se movendo num campo de amplas dimensões. Se é verdade que eles jogam conforme esquemas de marcação e ataque, seguindo
a orientação do técnico, deve-se no
entanto levar em conta que cada jogador tem sua percepção da jogada e
decide deslocar-se nesta ou naquela
direção, ou manter-se parado, certo
de que a bola chegará a seus pés. Nada disso se pode prever, daí resultando um alto índice de probabilidades, ou seja, de ocorrências imprevisíveis e que, portanto, escapam ao
controle.
Tomemos, como exemplo, um
lance que quase sempre implica perigo de gol: o tiro de canto. Não é à
toa que, quando se cria essa situação, os jogadores da defesa se afligem em anular as possibilidades que
têm os adversários de fazerem o gol.
Sentem-se ao sabor do acaso, da imprevisibilidade. O time adversário
desloca para a área do que sofre o tiro de canto seus jogadores mais altos e, por isso mesmo, treinados para cabecear para dentro do gol. Isto
reduz o grau de imprevisibilidade
por aumentar as possibilidades do
time atacante de aproveitar em seu
favor o tiro de canto e fazer o gol.
Nessa mesma medida, crescem, para a defesa, as dificuldades de evitar
o pior. Mas nada disso consegue eliminar o acaso, uma vez que o batedor do escanteio, por mais exímio
que seja, não pode com precisão absoluta lançar a bola na cabeça de determinado jogador. Além do mais, a
inquietação ali na área é grande, todos os jogadores se movimentam,
uns tentando escapar à marcação,
outros procurando marcá-los. Essa
movimentação, multiplicada pelo
número de jogadores que se movem,
aumenta fantasticamente o grau de
imprevisibilidade do que ocorrerá
quando a bola for lançada. A que altura chegará ali? Qual jogador estará, naquele instante, em posição
propícia para cabeceá-la, seja para
dentro do gol, seja para longe dele?
Não existe treinamento tático, posição privilegiada, nada que torne previsível o desfecho do tiro de canto. A
bola pode cair ao alcance deste ou
daquele jogador e, dependendo da
sorte, será gol ou não.
Não quero dizer com isso que o resultado das partidas de futebol sejam apenas fruto do acaso, mas a
verdade é que, sem um pouco de sorte, neste campo, como em outros,
não se vai muito longe; jogadores,
técnicos e torcedores sabem disso,
tanto que todos querem se livrar do
chamado "pé frio". Como não pretendo passar por supersticioso, evito aderir abertamente a essa tese,
mas quando vejo, durante uma partida, meu time perder "gols feitos",
nasce-me o desagradável temor de
que aquele não é bom dia para nós e
de que a derrota é certa.
Que eu, mero torcedor, pense assim, é compreensível, mas que dizer
de técnicos de futebol que vivem de
terço na mão e medalhas de santos
sob a camisa e que, em face de cada
lance decisivo, as puxam para fora,
as beijam e murmuram orações? Isso para não falar nos que consultam
pais-de-santo e pagam promessas a
Iemanjá. É como se dissessem: treino os jogadores, traço o esquema de
jogo, armo jogadas, mas, independentemente disso, existem forças
imponderáveis que só obedecem
aos santos e pais-de-santo; são as
forças do acaso.
Mas não se pode descartar o fator
psicológico que, como se sabe, atua
sobre os jogadores de qualquer esporte; tanto isso é certo que, hoje,
entre os preparadores das equipes
há sempre um psicólogo. De fato, se
o jogador não estiver psicologicamente preparado para vencer, não
dará o melhor de si.
Exemplifico essa crença na psicologia com a história de um técnico
inglês que, num jogo decisivo da Copa da Europa, teve um de seus jogadores machucado. Não era um craque, mas sua perda desfalcaria o time. O médico da equipe, depois de
atender o jogador, disse ao técnico:
"Ele já voltou a si do desmaio, mas
não sabe quem é". E o técnico: "Ótimo! Diga que ele é o Pelé e que volte
para o campo imediatamente".
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