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ARIANO SUASSUNA
Elogio do Almanaque
MESTRE BARBOSA LIMA
Em março do ano passado,
comentando o belo filme
"Outras Estórias", que Pedro Bial
criou a partir de contos de João
Guimarães Rosa, citei uma frase
que sempre me impressionou
muito. Recentemente transcrita
em excelente matéria publicada
na revista "Palavra" por Adriana
Victor, tal frase é daquele grande
brasileiro que foi Alceu Amoroso
Lima e diz o seguinte: "Do Nordeste para Minas corre um eixo
que, não por acaso, segue o curso
do São Francisco, o rio da unidade nacional. A esse eixo o Brasil
tem que voltar de vez em quando,
se não quiser se esquecer de que é
Brasil".
Comentando tais palavras, dizia
eu que a frase ganha um peso ainda maior porque Alceu Amoroso
Lima foi um grande brasileiro
nascido e criado no Rio de Janeiro, e não em Minas ou no Nordeste. Mas nós, mineiros e nordestinos, temos o dever de lembrar
que o eixo se prolonga para o
Norte e para o Sul: São Paulo, o
São Paulo verdadeiro e profundo,
não é superior, contrário ou inferior a Goiás, ao Nordeste, à Amazônia, a Minas ou ao Rio Grande.
Somos, todos, integrantes do
imenso arquipélago que é o Brasil
e que, caso ainda seja possível deter o desastroso processo político
e econômico a que vem sendo
submetido, continuará podendo
repetir as palavras daquele outro
grande brasileiro que foi Monteiro Lobato: "Nada de imitar seja lá
quem for. Temos de ser nós mesmos. Ser núcleo de cometa, não
cauda. Puxar fila, não seguir".
Mas, ao citar assim, às vezes até
insistentemente, as palavras de
Alceu Amoroso Lima e Monteiro
Lobato, nunca deixei de lado outro dos Mestres anteriores à minha geração, o grande brasileiro
Barbosa Lima Sobrinho, que acaba de desaparecer, abrindo um
claro terrível nas fileiras daqueles
que se empenham na defesa do
Brasil e de seu Povo. Por exemplo:
a partir de certa época, refletindo
sobre palavras dele (como fiz numa entrevista que concedi a Gerson Camarotti), passei a ver que
só existem, no Brasil, dois partidos políticos: o Partido Congonhês, cujos patronos são pessoas
como Zumbi dos Palmares, O
Aleijadinho, Villa-Lobos, Tiradentes, Antônio Conselheiro ou
Euclides da Cunha e o Partido
Disneyoso, o de Calabar, Joaquim Silvério dos Reis e outros
traidores que, sob diversos pretextos, são favoráveis à entrega
das nossas terras, das nossas riquezas, das nossas comunicações,
dos nossos bancos, da nossa cultura, da nossa televisão e até da
nossa comum e simples auto-estima de Povo escuro e mestiço, da
nossa indispensável capacidade
de altivez e dignidade. Conforme
se pode ver por seu nome, a meca
do nosso Partido Congonhês situa-se em Minas: é o Santuário
dos 12 Profetas que O Aleijadinho
construiu e esculpiu em Congonhas. Já a meca procurada pelas
romarias do partido dos traidores
situa-se em Miami, nos Estados
Unidos: é a Disneylândia, o maior
monumento que a imbecilidade
humana produziu no século 20
(pelo menos no campo da artes
plásticas e cênicas).
Por outro lado, num dos últimos artigos que publiquei ainda
no primeiro caderno da Folha,
lembrei que, ao tomar posse da
cadeira que ocupo na Academia
Brasileira de Letras, procurei fazer
com que os rituais da cerimônia
tivessem um significado simbólico, ligado a meu universo de escritor. Foi assim que meu fardão
foi feito por Edite Minervina, a
mesma costureira popular que
corta minhas roupas do dia-a-dia;
os bordados, por Cicy Ferreira,
que trabalha para o Clube das Pás
Douradas, um bloco popular recifense de Carnaval; e o colar, por
Isaías Leal, que também se encarregou de fazer a Espada.
Mas, além disso e sempre na
busca de identificar a cerimônia
com os rituais e a festa do povo do
Brasil real, o governador Arraes e
eu fizemos, no Palácio do Campo
das Princesas, uma espécie de
"posse prévia", na qual a cantadora Mocinha de Passira me colocou
o colar ao pescoço e Manuel Salustiano, o Mestre do Maracatu
Rural Piaba de Ouro, me entregou nas mãos a Espada; aquela
mesma Espada que (como também esclareci no artigo da Folha),
na Academia Brasileira de Letras,
me seria entregue por meu Mestre, Barbosa Lima Sobrinho. Ao
falar e agir assim, procurava eu ligar meus dois Mestres num só
emblema, para que eles comunicassem à minha Espada um significado também simbólico: entregue por eles, ela passava a lembrar
o nacional e o popular dentro de
cujas fronteiras procuro enxergar
o povo do Brasil real ou aqueles
que, mesmo nascidos no Brasil
oficial e por ele formados (como
Euclides da Cunha), procuram
vencer seus preconceitos e deformações para se colocar ao lado do
primeiro.
Bem se pode imaginar, então, a
dor que me atingiu ao saber da
morte de Barbosa Lima Sobrinho.
Resta-me o consolo de ver pessoas como Luis Fernando Veríssimo chamarem o Mestre desaparecido de "iluminado", isto é, um
homem que, exatamente por ser
dotado de visão e lucidez especiais, não se limitava a apenas
avistar as coisas: era, sim, capaz
de enxergá-las, o que é ainda
mais raro e mais difícil quando
passam todo dia diante dos nossos olhos, perturbados por todos
os tipos de cegueira, voluntária ou
involuntária. Disse o nosso grande Luis Fernando Veríssimo:
"Barbosa Lima Sobrinho não fez
mais do que repetir o óbvio que
ninguém estava vendo, ou pelo
menos ninguém estava dizendo
com a mesma clareza: que estão
roubando o País debaixo de nossos pés, que a Nação está sendo
pilhada de tudo, a começar pela
sua auto-estima e sua identidade
cultural e que isso simplesmente
precisa parar".
(Continua na próxima semana.)
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