São Paulo, segunda-feira, 24 de julho de 2000


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ARIANO SUASSUNA

Elogio do Almanaque

MESTRE BARBOSA LIMA
Em março do ano passado, comentando o belo filme "Outras Estórias", que Pedro Bial criou a partir de contos de João Guimarães Rosa, citei uma frase que sempre me impressionou muito. Recentemente transcrita em excelente matéria publicada na revista "Palavra" por Adriana Victor, tal frase é daquele grande brasileiro que foi Alceu Amoroso Lima e diz o seguinte: "Do Nordeste para Minas corre um eixo que, não por acaso, segue o curso do São Francisco, o rio da unidade nacional. A esse eixo o Brasil tem que voltar de vez em quando, se não quiser se esquecer de que é Brasil".
Comentando tais palavras, dizia eu que a frase ganha um peso ainda maior porque Alceu Amoroso Lima foi um grande brasileiro nascido e criado no Rio de Janeiro, e não em Minas ou no Nordeste. Mas nós, mineiros e nordestinos, temos o dever de lembrar que o eixo se prolonga para o Norte e para o Sul: São Paulo, o São Paulo verdadeiro e profundo, não é superior, contrário ou inferior a Goiás, ao Nordeste, à Amazônia, a Minas ou ao Rio Grande. Somos, todos, integrantes do imenso arquipélago que é o Brasil e que, caso ainda seja possível deter o desastroso processo político e econômico a que vem sendo submetido, continuará podendo repetir as palavras daquele outro grande brasileiro que foi Monteiro Lobato: "Nada de imitar seja lá quem for. Temos de ser nós mesmos. Ser núcleo de cometa, não cauda. Puxar fila, não seguir".
Mas, ao citar assim, às vezes até insistentemente, as palavras de Alceu Amoroso Lima e Monteiro Lobato, nunca deixei de lado outro dos Mestres anteriores à minha geração, o grande brasileiro Barbosa Lima Sobrinho, que acaba de desaparecer, abrindo um claro terrível nas fileiras daqueles que se empenham na defesa do Brasil e de seu Povo. Por exemplo: a partir de certa época, refletindo sobre palavras dele (como fiz numa entrevista que concedi a Gerson Camarotti), passei a ver que só existem, no Brasil, dois partidos políticos: o Partido Congonhês, cujos patronos são pessoas como Zumbi dos Palmares, O Aleijadinho, Villa-Lobos, Tiradentes, Antônio Conselheiro ou Euclides da Cunha e o Partido Disneyoso, o de Calabar, Joaquim Silvério dos Reis e outros traidores que, sob diversos pretextos, são favoráveis à entrega das nossas terras, das nossas riquezas, das nossas comunicações, dos nossos bancos, da nossa cultura, da nossa televisão e até da nossa comum e simples auto-estima de Povo escuro e mestiço, da nossa indispensável capacidade de altivez e dignidade. Conforme se pode ver por seu nome, a meca do nosso Partido Congonhês situa-se em Minas: é o Santuário dos 12 Profetas que O Aleijadinho construiu e esculpiu em Congonhas. Já a meca procurada pelas romarias do partido dos traidores situa-se em Miami, nos Estados Unidos: é a Disneylândia, o maior monumento que a imbecilidade humana produziu no século 20 (pelo menos no campo da artes plásticas e cênicas).
Por outro lado, num dos últimos artigos que publiquei ainda no primeiro caderno da Folha, lembrei que, ao tomar posse da cadeira que ocupo na Academia Brasileira de Letras, procurei fazer com que os rituais da cerimônia tivessem um significado simbólico, ligado a meu universo de escritor. Foi assim que meu fardão foi feito por Edite Minervina, a mesma costureira popular que corta minhas roupas do dia-a-dia; os bordados, por Cicy Ferreira, que trabalha para o Clube das Pás Douradas, um bloco popular recifense de Carnaval; e o colar, por Isaías Leal, que também se encarregou de fazer a Espada.
Mas, além disso e sempre na busca de identificar a cerimônia com os rituais e a festa do povo do Brasil real, o governador Arraes e eu fizemos, no Palácio do Campo das Princesas, uma espécie de "posse prévia", na qual a cantadora Mocinha de Passira me colocou o colar ao pescoço e Manuel Salustiano, o Mestre do Maracatu Rural Piaba de Ouro, me entregou nas mãos a Espada; aquela mesma Espada que (como também esclareci no artigo da Folha), na Academia Brasileira de Letras, me seria entregue por meu Mestre, Barbosa Lima Sobrinho. Ao falar e agir assim, procurava eu ligar meus dois Mestres num só emblema, para que eles comunicassem à minha Espada um significado também simbólico: entregue por eles, ela passava a lembrar o nacional e o popular dentro de cujas fronteiras procuro enxergar o povo do Brasil real ou aqueles que, mesmo nascidos no Brasil oficial e por ele formados (como Euclides da Cunha), procuram vencer seus preconceitos e deformações para se colocar ao lado do primeiro.
Bem se pode imaginar, então, a dor que me atingiu ao saber da morte de Barbosa Lima Sobrinho. Resta-me o consolo de ver pessoas como Luis Fernando Veríssimo chamarem o Mestre desaparecido de "iluminado", isto é, um homem que, exatamente por ser dotado de visão e lucidez especiais, não se limitava a apenas avistar as coisas: era, sim, capaz de enxergá-las, o que é ainda mais raro e mais difícil quando passam todo dia diante dos nossos olhos, perturbados por todos os tipos de cegueira, voluntária ou involuntária. Disse o nosso grande Luis Fernando Veríssimo: "Barbosa Lima Sobrinho não fez mais do que repetir o óbvio que ninguém estava vendo, ou pelo menos ninguém estava dizendo com a mesma clareza: que estão roubando o País debaixo de nossos pés, que a Nação está sendo pilhada de tudo, a começar pela sua auto-estima e sua identidade cultural e que isso simplesmente precisa parar".


(Continua na próxima semana.)


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