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MÔNICA SALMASO E ANDRÉ MEHMARI
O futuro do passado da bossa nova
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Parecia o início de um prelúdio de Chopin. Ou uma versão alternativa da canção "Der Doppelganger" (O Duplo) de
Schubert. Mas o que isso estava
fazendo num show da série "Brasil da Bossa"?
Foi então que Mônica Salmaso
começou a cantar "Insensatez"
(Tom Jobim/Vinicius de Moraes).
E essa canção de 1963, a essa altura tão definitiva no cânone da
nossa memória -tão impossível
de ser alterada quanto um prelúdio de Chopin ou um "lied" de
Schubert- virou lenta e espantosamente outra canção, projetada
para frente e para trás pelo pianista André Mehmari.
Onde estava aquele baixo, que
vai descendo em semitons, como
um lamento? E a sequência do
acorde diminuto ("insensa-TEZ") para o menor com sexta
("que você FEZ")? Estava só na
memória, que tocava em contraponto com as harmonias "antigas" de Mehmari, numa espécie
de dupla harmonização imaginária, que cada um de nós praticava
espontaneamente, enquanto Mônica Salmaso fazia chorar de dor
nosso amor tão delicado.
Havia mais em jogo, sexta passada na sala pequena do Sesc Vila
Mariana, do que se pode imaginar. Dentre todos os gêneros da
nossa música popular, a bossa nova é o que menos se abre às liberdades. A publicação do "Cancioneiro Jobim", há dois anos, registrou o que o ouvido já sabia: não
se mexe em Tom. O que ele escreveu é o que ele escreveu, como
uma curva de Niemeyer não permite correções, nem um verso de
Drummond. A comparação vem
a propósito, porque Jobim tem
mesmo de ser visto nessa companhia. Especialmente as canções
com Vinicius, coleção de obras-primas que vêm ressurgindo em
toda sua grandeza, agora que o
tempo as fez ficar fora do tempo.
Isso posto, o que dizer das fantasias de Mehmari? Para quem
não ouviu, podem sugerir alucinações, presunções. Mas a coragem de reinventar as coisas é tão
pensada quanto natural, para artistas como ele. E como ela, que
faz da voz um instrumento de habitação, e acolhe os visitantes
mais diversos na morada de si. O
velamento do original, aqui, não
tem nada de teatral. É como a experiência acumulada, o "triunfo
do tempo", característico das canções da bossa nova, e bem descrito por Lorenzo Mammì na apresentação do "Cancioneiro", elevado agora a uma segunda potência,
para o repertório como um todo.
Nada disso faria sentido sem a
presença humana desses músicos: Mehmari compondo vastidões e silêncios, depois gingando
como um urso no teclado, botando Berio e Ligeti, mais Mehldau e
Jarrett, na roda; Mônica dando vida a um ideal de interioridade de
cada um de nós, depois alegre no
batuque do mundo, à vontade
consigo e conosco, encantada pela música.
A tristeza é senhora, mas "Desde que o Samba É Samba" (Caetano) nunca foi assim.
E ninguém faz "Camisa Amarela" (Ary Barroso) melhor que esses dois. Liberta das caricaturas,
com virtuosismo desprendido e
bom humor total.
A tristeza é senhora, mas vem
tão linda nas linhas de Tom, nos
versos de Vinicius: "Vem e chora
comigo/ o tempo que o amor não
nos deu,/ toda infinita espera..."
Essa derradeira primavera não
tem fim. Entrou para a natureza.
E no ciclo vital da música, surge
de novo, como nenhuma vez, na
tristeza e alegria infinitas de André Mehmari e Mônica Salmaso.
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