São Paulo, quarta-feira, 24 de julho de 2002

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MÔNICA SALMASO E ANDRÉ MEHMARI

O futuro do passado da bossa nova

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Parecia o início de um prelúdio de Chopin. Ou uma versão alternativa da canção "Der Doppelganger" (O Duplo) de Schubert. Mas o que isso estava fazendo num show da série "Brasil da Bossa"?
Foi então que Mônica Salmaso começou a cantar "Insensatez" (Tom Jobim/Vinicius de Moraes). E essa canção de 1963, a essa altura tão definitiva no cânone da nossa memória -tão impossível de ser alterada quanto um prelúdio de Chopin ou um "lied" de Schubert- virou lenta e espantosamente outra canção, projetada para frente e para trás pelo pianista André Mehmari.
Onde estava aquele baixo, que vai descendo em semitons, como um lamento? E a sequência do acorde diminuto ("insensa-TEZ") para o menor com sexta ("que você FEZ")? Estava só na memória, que tocava em contraponto com as harmonias "antigas" de Mehmari, numa espécie de dupla harmonização imaginária, que cada um de nós praticava espontaneamente, enquanto Mônica Salmaso fazia chorar de dor nosso amor tão delicado.
Havia mais em jogo, sexta passada na sala pequena do Sesc Vila Mariana, do que se pode imaginar. Dentre todos os gêneros da nossa música popular, a bossa nova é o que menos se abre às liberdades. A publicação do "Cancioneiro Jobim", há dois anos, registrou o que o ouvido já sabia: não se mexe em Tom. O que ele escreveu é o que ele escreveu, como uma curva de Niemeyer não permite correções, nem um verso de Drummond. A comparação vem a propósito, porque Jobim tem mesmo de ser visto nessa companhia. Especialmente as canções com Vinicius, coleção de obras-primas que vêm ressurgindo em toda sua grandeza, agora que o tempo as fez ficar fora do tempo.
Isso posto, o que dizer das fantasias de Mehmari? Para quem não ouviu, podem sugerir alucinações, presunções. Mas a coragem de reinventar as coisas é tão pensada quanto natural, para artistas como ele. E como ela, que faz da voz um instrumento de habitação, e acolhe os visitantes mais diversos na morada de si. O velamento do original, aqui, não tem nada de teatral. É como a experiência acumulada, o "triunfo do tempo", característico das canções da bossa nova, e bem descrito por Lorenzo Mammì na apresentação do "Cancioneiro", elevado agora a uma segunda potência, para o repertório como um todo.
Nada disso faria sentido sem a presença humana desses músicos: Mehmari compondo vastidões e silêncios, depois gingando como um urso no teclado, botando Berio e Ligeti, mais Mehldau e Jarrett, na roda; Mônica dando vida a um ideal de interioridade de cada um de nós, depois alegre no batuque do mundo, à vontade consigo e conosco, encantada pela música.
A tristeza é senhora, mas "Desde que o Samba É Samba" (Caetano) nunca foi assim.
E ninguém faz "Camisa Amarela" (Ary Barroso) melhor que esses dois. Liberta das caricaturas, com virtuosismo desprendido e bom humor total.
A tristeza é senhora, mas vem tão linda nas linhas de Tom, nos versos de Vinicius: "Vem e chora comigo/ o tempo que o amor não nos deu,/ toda infinita espera..." Essa derradeira primavera não tem fim. Entrou para a natureza. E no ciclo vital da música, surge de novo, como nenhuma vez, na tristeza e alegria infinitas de André Mehmari e Mônica Salmaso.


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