São Paulo, segunda-feira, 24 de julho de 2006

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Os que se vão, os que ficamos

JOÃO BATISTA DE ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

SIM, somos mesmo passageiros, efêmeros.
Ao olhar para o semblante calmo e imóvel de Gianfrancesco Guarnieri no velório do Hospital Sírio-Libanês, surpreendo-me a somar perdas. Em que algibeira teria eu guardado os ganhos, os feitos, as lutas, os prazeres? Em silêncio, dialogo com o silêncio desse amigo de tantas idéias, tantos feitos, tanta generosidade.
Conheci Guarnieri, ainda estudante de engenharia, na Politécnica da USP, início dos anos 1960. Eu tinha, então, já como um ídolo, esse líder do Teatro de Arena, movimento que marcou profundamente minha geração. Vi sua imagem primeiro no pungente filme "O Grande Momento", de Roberto Santos: a imagem de um jovem ator, talentoso, vestindo a camisa de nosso neo-realismo, porta aberta para o moderno cinema brasileiro. Depois, eu o via quase face a face, pois era assim o Arena: atores próximos do público, como numa roda envolvente, em que nos tornávamos participantes da aventura de representar este país tão fascinante quanto difícil. Os personagens desfilavam ali seus dramas, suas malícias, sonhos, entre perigos e glórias, esperanças e desesperos.
Nós, da platéia, vínhamos das escolas, das assembléias, das passeatas, onde a questão nacional e popular nos ocupava mais do que a própria escola. Era preciso mudar as coisas, mudar o país, mudar o poder, a política, construir um novo futuro!
Era o que sonhávamos ali, na roda de palavras e peitos empinados de rebeldia dos atores e seus autores, entre os quais estava Guarnieri.

Vida distorcida
Mas o tempo foi escasso.
Logo estávamos todos, a partir de 1964, sob a ditadura militar com seus 21 anos de violência, exclusão, distorcendo a vida brasileira ainda para muitas décadas. Perdemos, além de vidas preciosas, a energia de uma geração que se preparava para dirigir o país. Vimos o poder deslizar para as mãos de incautos e da escória oportunista que ainda hoje domina boa parte da vida política brasileira, inflando uma perigosa descrença na sociedade.
Ao olhar para a expressão tranqüila do Guarnieri em seu repouso de guerreiro, dialogo com seu silêncio sábio e imagino que tudo poderia ter sido diferente: o Golpe de 64 poderia não ter acontecido, eu teria terminado meu curso de engenharia ainda naquele ano fatídico, e Guarnieri teria desenvolvido ainda mais suas idéias, suas críticas, sua dramaturgia com toda aquela gente que eu via de tão perto no Arena.
O mundo já não era como queríamos, como sonháramos. Viver sob a ditadura nos fez aprender valores antes pouco sedimentados: a democracia, o pluralismo, o Estado de Direito, consciência fundamental na luta pela derrota (e não "derrubada") da ditadura militar. Nos tornamos mais críticos de nossos próprios sonhos, comportamento que Guarnieri já cultivara, precocemente.
Nós o perdemos agora, Guarnieri, isso faz parte da vida. Vivemos pouco e por isso é tão importante o que fazemos e o que fizemos pela vida. Vale a pena ainda, apesar de tanto desacerto, o exemplo, a dignidade, o desconcerto e a repulsa radical a toda injustiça, a toda perseguição, a toda violência, a toda miséria. E a persistente crença de que é possível um mundo melhor.
Ali, de pé, entre familiares desse amigo, consigo imaginar, em seu semblante de calma infinita, o sinal de um leve sorriso. Guarnieri continuará vivendo entre nós como um inesquecível e raro exemplo.


JOÃO BATISTA DE ANDRADE , cineasta, dirigiu Guarnieri em "Eterna Esperança" (1969, em parceria com Jean-Claude Bernardet) e "A Próxima Vítima" (1983). Desde 2005 "está" secretário da Cultura do Estado de São Paulo


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