|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTIGO
Decisão, de foro privado, abre questão ética
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A voz, na propaganda do
"bankline" de um grande banco, não é do ministro. Mas parece muito.
A letra da canção, originalmente do ministro, foi adaptada para oferecer um novo serviço do banco.
O banco em questão também
é proprietário de um instituto
cultural, que pode, eventualmente, vir a ser favorecido pelo
ministério ora comandado pelo
ministro que fez a letra original
da canção adaptada, cantada
por uma voz que só se parece
muito com a dele, mas não é.
A canção original falava em
"entrar na rede, promover um
debate, levar um oriki do meu
velho orixá ao porto de um disquete de um micro em taipé..."
Fazia o elogio da internet como
veículo de multiplicação de tradições, vozes e culturas.
A canção adaptada está sendo utilizada por um grande
banco, não exatamente um
grande multiplicador de vozes
e culturas nem um grande promovedor de debates. O ministro exerce um cargo público,
em um ministério que recebe
uma parcela irrisória do orçamento total do governo, mas é
também um músico popular talentoso e bem-sucedido.
Sua decisão, ao permitir que
uma canção sua seja adaptada e
que alguém imite sua voz, é de
foro privado. Permitir que se
crie uma artimanha astuciosa
às recomendações éticas de não
ceder sua voz para órgãos que
possam vir a ser favorecidos
por seu ministério também é de
foro privado.
Nós, espectadores do músico
cujas decisões são privadas e do
ministro cujas decisões são públicas, devemos assistir passivamente tanto ao comercial cuja voz confundimos ilusoriamente com a do ministro como
às suas decisões privadas.
Está tudo dentro da lei. Não
há como, na prática, incriminar
ninguém. Mas há uma pergunta que devemos fazer, para decidir se uma decisão é ou não é
ética: "Que vida queremos
ter?", uma pergunta coletiva,
em contraposição à pergunta
moral: "Que vida devo ter?",
uma pergunta individual.
Pode ser que o ministro fez o
que devia e é moralmente inatacável. Mas, se ética é a vida
que queremos ter, sob um governo que mantenha os valores
democráticos para o bem público, então não entendo mais
nada de ética (nem de estética).
Texto Anterior: Gil cede música para comercial de banco Próximo Texto: Crítica: "Exterminador" mostra Cameron genial Índice
|