São Paulo, terça-feira, 24 de julho de 2007

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ARTIGO

Decisão, de foro privado, abre questão ética

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A voz, na propaganda do "bankline" de um grande banco, não é do ministro. Mas parece muito.
A letra da canção, originalmente do ministro, foi adaptada para oferecer um novo serviço do banco.
O banco em questão também é proprietário de um instituto cultural, que pode, eventualmente, vir a ser favorecido pelo ministério ora comandado pelo ministro que fez a letra original da canção adaptada, cantada por uma voz que só se parece muito com a dele, mas não é.
A canção original falava em "entrar na rede, promover um debate, levar um oriki do meu velho orixá ao porto de um disquete de um micro em taipé..." Fazia o elogio da internet como veículo de multiplicação de tradições, vozes e culturas.
A canção adaptada está sendo utilizada por um grande banco, não exatamente um grande multiplicador de vozes e culturas nem um grande promovedor de debates. O ministro exerce um cargo público, em um ministério que recebe uma parcela irrisória do orçamento total do governo, mas é também um músico popular talentoso e bem-sucedido.
Sua decisão, ao permitir que uma canção sua seja adaptada e que alguém imite sua voz, é de foro privado. Permitir que se crie uma artimanha astuciosa às recomendações éticas de não ceder sua voz para órgãos que possam vir a ser favorecidos por seu ministério também é de foro privado.
Nós, espectadores do músico cujas decisões são privadas e do ministro cujas decisões são públicas, devemos assistir passivamente tanto ao comercial cuja voz confundimos ilusoriamente com a do ministro como às suas decisões privadas.
Está tudo dentro da lei. Não há como, na prática, incriminar ninguém. Mas há uma pergunta que devemos fazer, para decidir se uma decisão é ou não é ética: "Que vida queremos ter?", uma pergunta coletiva, em contraposição à pergunta moral: "Que vida devo ter?", uma pergunta individual.
Pode ser que o ministro fez o que devia e é moralmente inatacável. Mas, se ética é a vida que queremos ter, sob um governo que mantenha os valores democráticos para o bem público, então não entendo mais nada de ética (nem de estética).


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