São Paulo, sábado, 24 de julho de 2010

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CRÍTICA ROMANCE

Prosa excepcional de McCann revela mazelas do cotidiano

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Tornou-se consenso ler "Deixe o Grande Mundo Girar", excepcional romance do irlandês Colum McCann (Dublin, 1965), como "o grande romance sobre o 11 de Setembro" (a "Esquire" começou com a onda). A relação com o evento é inescapável, claro, mas surge no livro (ou não surge) assim como na célebre capa de Art Spiegelman para a "New Yorker" posterior à catástrofe: duas silhuetas negras das Torres Gêmeas inexistentes.
O fato é que rigorosamente nada do argumento dessa narrativa deveria ser adiantado ao leitor, pois o estilo tateante de McCann exige que personagens e suas histórias se desvelem com vagar, no compasso de frases breves e longas, plenas de ritmo.
Um exemplo: "Oh. O interfone. Oh. Oh. Colher caída no chão. Oh. Caminhando rápida pelo corredor. Volta e pega a colher. Tudo pronto agora, pronto, sim. Me dê de volta o corpo dele, Sr. Nixon, e não discutiremos. Pegue este cadáver, com todos os seus 52 anos, e troque-o; eu não me arrependerei, não me queixarei. Apenas devolva-o todo costurado e bonito".
Esse hábil oscilar entre terceira pessoa onisciente e vozes (neste caso a de Claire Soderberg, que perdeu o filho no Vietnã) aumenta a sensação de que o texto está sendo escrito diante dos olhos do leitor. A boa tradução de Maria José Silveira contribui para a vertigem.

DORES DO MUNDO
Fiquemos com dois aspectos fundamentais da trama: os eventos ocorrem sob a sombra do acrobata francês Philippe Petit atravessando num cabo a distância entre as Torres Gêmeas em 1974.
Abaixo dele, estão Nova York e a vida das pessoas testando seu tênue equilíbrio diante das mazelas da vida. Entre elas, está Corrigan, um monge irlandês que abdicou de tudo para cuidar de prostitutas viciadas, entre elas Tillie e Jazzlyn, mãe e filha. Tillie tem 38 anos e já é avó.
Ele próprio um alcoólatra, Corrigan recebe seu irmão vindo da Irlanda, que o define: "Corrigan desejava as dores das outras pessoas. Não queria lidar com a sua". Espécie de receptáculo das dores do mundo, os dramas de "Deixe o Grande Mundo Girar" acontecem ao redor da existência de Corrigan.
"Tais pessoas sucumbirão ou não? Quando Petit despencará?", muitos se perguntam. Outros torcem para que ele simplesmente não caia, perdurando na memória em lugar das torres que não mais existem.
Herdeiro do fervor humanista que percorre grande parte da literatura norte-americana, aquela escrita por imigrantes e que talvez tenha surgido em Sherwood Anderson, Colum McCann fez de seu romance um pungente memorial que desafiará a passagem do tempo.

JOCA REINERS TERRON é autor de "Do Fundo do Poço se Vê a Lua" (Companhia das Letras).


DEIXE O GRANDE MUNDO GIRAR

AUTOR Colum McCann
TRADUÇÃO Maria José Silveira
EDITORA Record
QUANTO R$ 52,90 (378 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo




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