São Paulo, sexta-feira, 24 de agosto de 2001

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Febre na Europa, cantora islandesa faz shows concorridos, lança disco e é tema de livro

Björk
A deusa pagã do pop

ALCINO LEITE NETO
DE PARIS

Björk é uma febre na Europa. Nas bancas de revistas, está na capa de várias publicações. Seu novo disco, "Vespertine", chega às lojas na próxima terça-feira. No mesmo dia, será lançado o livro "Björk", publicado pela prestigiosa Editions du Seuil (a mesma do Nobel Günter Grass). No livro, sua imagem serve como signo mutante para o trabalho de vários artistas e fotógrafos de vanguarda, como Nobuyoshi Araki e Inez van Lamsweerde.
O rosto da cantora islandesa de 35 anos também está estampado por toda Paris, nos cartazes publicitários que anunciam o disco e os concertos que dão início à sua turnê mundial.
Björk queria se apresentar na Ópera de Paris, que não tinha datas disponíveis. Seus dois espetáculos foram realizados no Grand Rex, um velho cinema transformado em sala de espetáculos, nos dias 18 e 20. Em cada show, havia 2.000 pessoas, a lotação total. Um número pequeno, se comparado ao de suas megaapresentações. Mas ela não queria muito mais.
Quer menos, aliás. Amanhã vai repetir o show para 300 pessoas na maravilhosa Sainte-Chapelle, construída em 1248. Cantará sem microfone, andando pela platéia, como ela própria antecipou. Os ingressos estão esgotados há meses. Um jornal afirmou que chegam a custar 30 mil francos (R$ 10 mil) no câmbio negro. O primeiro-ministro francês, Lionel Jospin, teria reservado um lugar para o espetáculo.
A passagem de Björk por Paris, desta vez, ultrapassa a rotina das turnês musicais. É um marco, um divisor de águas. A cantora trouxe para a cidade um show rigoroso e comovente, um disco difícil e uma linguagem poético-musical única e delicada. Em troca, os franceses a aclamaram. Não apenas como a maior diva do pop, mas como um ícone da arte contemporânea e um anjo anunciador do futuro da música.
A björkmania não pode ser explicada, porém, como simples resultado da campanha publicitária e da promoção da imprensa. Os ingressos dos shows se esgotaram antes que essa campanha começasse e as revistas pudessem falar a respeito, como ocorreu com a turnê do Radiohead nos Estados Unidos.
Björk e Radiohead se beneficiam ambos de um fenômeno novo, pós-midiático e pós-massivo, que é a rede de informações da internet. Essa rede não só está difundindo informações específicas mais rapidamente do que a mídia convencional, como está imprimindo mudanças no gosto cultural (sobretudo juvenil) e se antecipando ao próprio cronograma da indústria do disco, quando distribui as músicas dos CDs.
A situação de disporem de um imenso número de fãs sem precisarem se submeter à imaginação comercial dos empresários da música deixa artistas como Björk e Thom Yorke (Radiohead) com bastante autonomia, tanto para criar quanto para exibir sua criação. Björk, ex-punk, é bastante solícita para com o espetáculo armado à sua volta, mas Yorke é um crítico feroz de tudo. Sua rebeldia política é conhecida.
Fora isso, Björk Gudmundsdottir parece ter se tornado, mais ainda após o filme de Lars von Trier ("Dançando no Escuro"), que lhe deu em 2000 o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes, uma espécie de ponte entre as várias artes e tendências culturais e um nome tolerável da música jovem para o velho establishment crítico. Para estes, sua música está se deslocando progressivamente rumo a um outro registro, que, impossível de definir, eles costumam chamar de jazz.
A cantora enfatizou contudo que "ainda está orgulhosa de fazer música pop", na entrevista coletiva para 200 jornalistas de todo o mundo.
A entrevista aconteceu na sede do Partido Comunista, escolha que ela definiu, com um sorriso matreiro, como atendendo a "razões apenas estéticas". O projeto da sede do PC é do arquiteto Oscar Niemeyer. Na entrevista, Björk afirmou que a generosidade é a "essência" de seu trabalho.
Generosidade e paixão foi o que se viu no concerto de lançamento de "Vespertine". A cantora se apresentou com uma orquestra de cordas de 42 músicos, um coro folclórico de 15 mulheres inuítas (tribo que vive na região do Alasca e da Groenlândia), o duo californiano Matmos e a harpista nova-iorquina Zeena Parkins.
Catherine Deneuve era a presença mais ilustre na platéia. A atriz francesa (que contracenou com Björk no filme de Von Trier) parou o Grand Rex ao entrar pelo hall, como qualquer espectador. "Björk e eu somos boas amigas, eu a vejo sempre. Gosto muito de sua música", disse, enquanto acendia um cigarro, e antes de ser carregada pelos amigos para dentro do auditório.
O show é dividido em três partes, com intervalos. A abertura fica por conta do ótimo som tecno-experimental do Matmos.
Quando inicia a segunda parte, a voz de Björk está soando no escuro. Um facho de luz explode. Ela está à frente da orquestra, no meio do público, cantando "Harm of Will", do novo disco. Caminha pela platéia, por dois corredores, e sobe ao palco. No telão, surgem imagens de geleiras em tons muito azuis e brancos.
Björk começa a segunda parte do espetáculo sozinha no palco, cantando "You've Been Flirting Again". Está vestida de vermelho, com uma saia de plumas e a blusa coberta de pequenas placas reluzentes de vidro ou de plástico que balançarão durante todo o tempo, transformando o corpo da cantora num instrumento de percussão. Os cabelos estão soltos, escorridos. Os pés, descalços.
Björk parece ungida pelo sublime. As músicas, entre a canção de ninar e o melodrama, convocam ao mesmo tempo os sentimentos mais simples e os estados de alma mais fundos. Há uma grande elaboração sonora em tudo.
Leitora do poeta cummings, que ela cita no novo disco, Björk desconstrói palavras, deixa outras deslizarem ao som das cordas da orquestra, procura no canto um contraponto aos sons eletrônicos. Estende os braços, dança, corre pelo palco feito criança. Sua voz reitera a promessa de inocência. A platéia vibra. Ela agradece: "Merci, merci beaucoup". Em "Vespertine", Björk é a estrela bailarina de Dionisos, de que falava Nietzsche. É a música como redenção, soando no céu escuro do mundo.



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