São Paulo, sábado, 24 de agosto de 2002

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LIVRO/LANÇAMENTO

JESUS CRISTO

Para Jack Miles, a ressurreição é o clímax de um épico divino, mais próximo da comédia que da tragédia

Ícone vira "obsessão na literatura ocidental"

DA REDAÇÃO

A seguir, a continuação da entrevista de Jack Miles à Folha.
(SYLVIA COLOMBO)

Folha - Qual a importância de Cristo como símbolo literário?
Jack Miles -
Antes dele, o herói literário nunca era vítima. Depois, o herói-vítima se tornou uma obsessão na literatura ocidental. Alguém pode dizer que a tragédia grega também traz a vítima como herói. Mas ali há uma confrontação entre o homem e nêmesis (vingança) ou ananke (destino), ou seja, forças divinas contra as quais o ser humano não tem chance. Cristo não é um herói trágico, pois combina em si mesmo o herói grego e as forças divinas.
Na história que protagoniza, não há outra força maior que ele. Isso faz de seu auto-sacrifício uma morte voluntária, um suicídio. Morre humilhado, como um criminoso. A aparência de nobreza é arrancada dele com suas roupas. Tudo isso virou um estímulo infindável à imaginação literária.

Folha - Como a sexualidade de Cristo molda esse símbolo?
Miles -
Significa muito o fato de Jesus ter se tornado um ser humano do sexo masculino, algo que passou em branco por muito tempo. Jesus nos aparece como um marido fiel ou um padre, mas é necessário para seu personagem o fato de que ele é um parceiro sexual em potencial, ainda que aparentemente nunca atue. Jesus nunca se casa nem tem filhos e morre jovem, fica congelado em sua juventude. Há algo em comum entre ele e atores famosos que sofreram. Como James Dean, Cristo foi lembrado para sempre.

Folha - Você diz que a Bíblia é uma obra de arte que insiste em dizer que não é uma obra de arte, e por isso precisa ser levada a sério. Acha que essa contradição explica as contradições da própria arte?
Miles -
Sim. Artistas sentem as imperfeições do mundo de maneira mais aguçada que os outros e buscam transferir significados. Um romancista politizado tentará fazer de sua ficção uma substituta para a política. Assim como um artista religioso quer fazer de sua arte uma espécie de religião. Todo esse esforço de substituição é falso e não funciona, ainda assim, serve como uma provocação. Hoje em dia, esse é o papel que resta à arte.

Folha - Cristo resulta de um sentimento de culpa divino?
Miles -
Sim, encarnado, Deus sofre as consequências -dor, humilhação e morte- do castigo que infligiu às suas criaturas. E cria a eucaristia. Ao unir-se a ele em sua morte, seus seguidores preparam-se para unir-se a ele em sua ressurreição. É assim que ele acredita reparar o estrago que fez. Restitui o presente da vida eterna que entregou e arrancou de Adão e Eva. Em Cristo, o épico divino encontra seu clímax, e porque sua derrota é na realidade uma vitória, o épico é uma divina comédia mais do que uma divina tragédia. A auto-humilhação de Deus vai além de tudo o que um herói trágico sofre, depois ultrapassa o que uma catarse trágica atinge.


CRISTO - UMA CRISE NA VIDA DE DEUS. De: Jack Miles. Tradutores: Carlos Eduardo Lins da Silva e Maria Cecília de Sá Porto. Editora: Companhia das Letras. Preço: R$ 42 (400 págs.)



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