São Paulo, sexta-feira, 24 de agosto de 2007

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Crítica

Salles usa mordomo como espelho e faz um ótimo filme sobre si mesmo

CRÍTICO DA FOLHA

Em "Santiago" existe um filme e, sobre ele, um outro filme. O primeiro diz respeito ao antigo mordomo da família Moreira Salles e foi feito em 1992 por João Moreira Salles.
Havia razão para o interesse por Santiago: de sua paixão pela aristocracia ao trabalho de copista, trata-se de um homem singular. No entanto, Salles não conseguiu dar forma à série de pensamentos e afetos comunicados pelo ex-empregado de sua família. Havia ali um passado que falava muito ao autor do filme, mas ao que parece não existia maneira de transformá-lo em um objeto estético, de montá-lo.
É apenas em 2007 que o filme fica pronto. Já não é mais -ou já não é apenas- um filme sobre Santiago, o mordomo, mas um extenso questionamento sobre o próprio autor e as razões que o levaram a filmar os locais que filmou e a pessoa que filmou, já que Santiago evoca a casa onde Salles passou sua infância e adolescência.
O que mais se comenta, o que mais o próprio cineasta enfatiza a respeito deste filme é a "luta de classes" implícita no ato de alguém tomar como personagem seu próprio mordomo.
Não há razão para tanto, mas em quase todo o filme, em preto-e-branco, Santiago aparece cercado por maçanetas, portas, objetos diversos. O enquadramento o oprime, assim como patrões podem oprimir a seus empregados. Mas não há luta de classes. Santiago é uma espécie de agregado da família.
Santiago é também uma espécie de memória auxiliar da família Moreira Salles, e é nessa medida que mais interessa a João. É como se este, partindo em busca do tempo perdido, precisasse de um apoio, do apoio desse memorioso capaz de não só lembrar das coisas, como de mitificá-las (a mansão de Walter Moreira Salles é, para ele, o duplo de um palácio florentino). Mas a memória pertence ao cineasta, a João.

Tempo para amadurecer
Não sendo um filme sobre Santiago, o mordomo, resta intacta a questão: por que tanto tempo para conseguir montá-lo? Algo se passou. A morte de Santiago, entre elas. Foi também o tempo de amadurecer a autocrítica, de admitir que, afinal, João Moreira Salles fazia um filme sobre si mesmo. E que se tratava de recuperar o seu passado, e não o de Santiago, que vive num passado de que é despojado. Tanto que, no único momento em que Santiago se dispõe a dizer algo de realmente pessoal, o cineasta deixa a câmera desligada: não era Santiago, nem a estirpe de "malditos" a que diz pertencer que importam. O mordomo, afinal um agregado, era só o espelho.
Um filme tão íntimo, em que o documentarista busca a si próprio através de outro, por que deveria nos interessar? Em primeiro lugar, porque qualquer um de nós busca, também, o seu passado nos objetos, nas pessoas, espaços e construções que freqüentou. Em segundo lugar, porque é uma natureza do cinema que Salles nos dá a ver: a da montagem. Se a operação de filmar é um impulso, a segunda, de montagem, consiste em dar forma, ao articular as imagens. Articular a quê? Essa a questão que embatucou o documentarista por quase 15 anos. Que operação é essa? É a de entendimento, de articulação entre as imagens captadas e o passado a que se procura dar forma. Materializar o passado é a proeza que "Santiago" consegue executar. (INÁCIO ARAUJO)


SANTIAGO
Produção:
Brasil, 2005
Direção: João Moreira Salles
Quando: em cartaz no Espaço Unibanco
Avaliação: ótimo


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