São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Mônica Bergamo

bergamo@folhasp.com.br

Marcos Ramos - 3.dez.2000/Agência O Globo
Cláudia Faissol roda o mundo com o pai da bossa nova


João por Cláudia

Cláudia Faissol acompanha João Gilberto há 12 anos pelos palcos e diz que o músico, com quem tem uma filha, não é "abilolado"; ela filma a vida dele para um documentário e afirma que o mundo ergue catedrais para ouvi-lo cantar

A telefonista do hotel Maksoud Plaza transfere a ligação para o apartamento de João Gilberto, 77. Cláudia Faissol, 36, atende. A colunista se identifica e pede para falar com o cantor, que cinco dias antes se apresentara em São Paulo. "Ele está no banho", diz ela. A conversa continua por quase uma hora. No fim, Cláudia autoriza que ela seja publicada.

 
Ela conhece João Gilberto há mais de 20 anos -seu pai, o dentista Olympio Faissol, é amigo do cantor. Há 12, viaja com ele pelo mundo registrando sua rotina e os bastidores de seus shows. Há quatro, eles tiveram uma filha, Luiza. Cláudia era casada. Passou por momentos difíceis. E não gosta de falar sobre o assunto. "A vida pessoal das pessoas não é ensinamento pra ninguém. A gente vai na vida tomando atitudes da maneira que pode, né? Foi tudo muito duro." A seguir, os principais trechos do bate-papo de Cláudia com a coluna:
 

FOLHA - O que você achou do show em São Paulo?
CLÁUDIA FAISSOL -
Foi lindo, foi maravilhoso e todo mundo amou. Ele estava bem-humorado. Eu acho que ele quis dar isso para o Brasil, sabe? Há quanto tempo ele não tocava aqui... E ele adora o povo daqui, apesar de ele às vezes ter essa mágoa grande do Brasil porque aqui os discos dele foram adulterados [em 1988, a EMI lançou o álbum "O Mito", com todas as músicas de João Gilberto que tinha no seu arquivo. Três discos iniciais do cantor foram modificados].

FOLHA - Sei.
CLÁUDIA -
É o grande trauma da vida dele. Ele poderia ter outro comportamento se não fosse essa história. Ele ficou com horror de fazer as coisas aqui no Brasil, entendeu?


"O João não pode mais assinar uma coisa e não cumprir porque ele tá com a reputação muito prejudicada. Depois todo mundo fica pensando que ele é abilolado, né?"

"São as letras que ele pegou para interpretar que são a seleção mais bonita de palavras que eu já ouvi na minha vida inteira, que enriqueceram a minha alma. Não foi à toa que eu fiquei assim, enfim, tão impressionada com a beleza que eu vi"

"Os discos dele foram adulterados. Ele poderia ter outro comportamento se não fosse essa história. Ele ficou com horror de fazer as coisas aqui no Brasil, entendeu?"

"Ele falava [no segundo dia de show em São Paulo]: "Eu quero entrar. Não sou atrasado, não! Eu tô ansioso, eu quero entrar, não sou atrasado, não, não sou atrasado, não"



FOLHA - Mesmo depois desse tempo todo?
CLÁUDIA -
Não houve nenhum crime cultural na face dessa Terra do tamanho desse. É como se pegassem os quadros do Picasso e começassem a pintar umas coisinhas cor-de-rosa, banalizassem aquela arte. Foi isso o que fizeram com os primeiros três discos dele. Uma obra de arte real, verdadeira, de sentimento raro e de aceitação mundial, que está sendo celebrada há 50 anos e que os originais estão desfeitos.

FOLHA - O pessoal em SP reclamou um pouco do atraso dele nos shows [de mais de uma hora].
CLÁUDIA -
É. Na realidade, coitado, ele chegou aqui em SP [vindo do Rio] atrasado. A gente pegou tempo ruim. Ficamos um tempão no avião, rodando em cima de São Paulo até poder descer. Foi uma luta muito grande para ele. Não foi um relaxamento dele com a coisa.

FOLHA - A informação é de que ele estava jantando no hotel enquanto a platéia o aguardava no Auditório Ibirapuera.
CLÁUDIA -
Não! Não tava jantando. Ele comeu quando chegou no hotel. Ele tinha que comer, né? Mas ele engoliu a comida. Engoliu, coitado. O avião que nos trouxe não tinha comida. Ele chegou faminto aqui, sabe? Ele teve, poxa, um vôo péssimo, com pressurização. Sabe quando o ouvido vai estourando, assim? Então, todo mundo sentiu isso. Eu senti, a minha filhinha até chorou.

FOLHA - Mas no dia seguinte ele também atrasou.
CLÁUDIA -
Mas foi bem menor, né? No segundo dia não deixaram ele entrar no palco [no horário certo]! Ele queria entrar. Eles falaram: não, tem que falar o Zuza [Homem de Mello, que apresentava o cantor], tem que ter a apresentação do Itaú, né, umas crianças de uma instituição e não sei o quê... Ele falava: "Eu quero entrar. Não sou atrasado, não!" (risos). É, ele falava: "Eu tô ansioso, eu quero entrar, não sou atrasado, não, não sou atrasado, não". Eu tinha dito a ele: "João, ontem reclamaram do atraso. Por favor, não vamos atrasar hoje". E aí ele não atrasou, não. Ele chegou no momento exato.

FOLHA - Você é a empresária, cuida das coisas dele?
CLÁUDIA -
Não, não. Eu ajudo no que eu posso porque a gente tem uma relação maravilhosa. Mas eu não tô cuidando de nada, não. Nem quero. É uma responsabilidade muito grande. Eu tento ajudar para ele não chegar atrasado, essas coisas. Sempre que eu posso, ajudo para que ele não faça coisas que ele próprio depois fique chateado porque fez, entende?

FOLHA - Ele não pode ter horror de fazer as coisas no país porque muitas pessoas o adoram no Brasil.
CLÁUDIA -
Ele gosta de dar show aqui. Mas ele tem muita preocupação com o que pode haver no som, no palco, com a falta de consciência. Não é com o público, não. Ele ama o público. Como ele gosta dos brasileiros... Ele passou a vida lutando pelos brasileiros, fora do país. Ele morou 15 anos na América para que estejam sendo celebrados os 50 anos dessa música, né?
Pô, o pessoal da América não queria deixar ele voltar [para shows neste mês no Brasil]. As pessoas amam ele lá. Eu falei: "Não tem como ele ficar aqui. Ele tem coisas planejadas há um ano no Brasil". Foi superdifícil porque, vou te falar: as propostas lá são muito boas. Mas eu falei: "O João não pode mais assinar uma coisa e depois não cumprir. Nem que a pessoa ofereça o dobro [de dinheiro] para ele". O que assinar tem que cumprir porque ele tá com a reputação muito prejudicada. Depois todo mundo fica pensando que ele é abilolado, né?

FOLHA - E ele não é, né?
CLÁUDIA -
Não é, nem um pouco. Ele gosta da música, ele gosta de ter a possibilidade de fazer a música. Sabe, poxa, esse negócio aqui, eu tive que explicar [para os organizadores do show em SP]: "Olha, ele quer o som do Japão, ele quer a iluminação do Japão, senão vai desafinar o violão dele, gente. Isso tudo tem um porquê. Vocês não pensem que eu estou pedindo a iluminação do Japão só porque tem a luzinha mais bonitinha, não". Nada que uma pessoa tão inteligente quanto ele diga é à toa, jogado no céu, no ar. Ele falou bem do [hotel] Maksoud, por exemplo. Os sucos aqui são de soja, pêssego com soja, morango com soja. Tudo feito de fruta natural. Não é à toa que ele fala daqui, não. Ele esteve no Carlyle, em Nova York. Você entra lá, vê aquelas flores e pensa que vai desmaiar de beleza, entendeu? Mas não tem o serviço que tem aqui. O Maksoud é um serviço pelo Brasil que o Brasil próprio despreza.

FOLHA - E vocês passearam em São Paulo?
CLÁUDIA -
O João é uma pessoa muito cuidadosa com o que ele faz, ele não passeia muito, não. Ele tá treinando para o próximo show [no Rio, hoje], tá mudando o repertório. Ele não faz nenhum show igual. Cada show é um show. Ele se esforça muito para poder dar aquilo que você viu lá. O João faz uma linguagem tão linda, mas tão linda, que quando ele toca na Rússia, em qualquer lugar, as pessoas fazem uma catedral para assisti-lo. Foi isso o que falou o cara que empresariou a Ella Fitzgerald: é uma honra trazer o João aqui porque ele é a boa música.

FOLHA - Você vai com ele a esses países todos?
CLÁUDIA -
Vou, vou. Eu estou fazendo um acompanhamento do trabalho dele há mais de 12 anos.

FOLHA - É um documentário, né?
CLÁUDIA -
Isso.

FOLHA - E ainda não acabou?
CLÁUDIA -
Não, isso é um trabalho para a vida inteira! Enquanto eu puder, eu quero fazer o pouquinho que eu faço. Não tenho patrocinador, eu faço como eu posso. Eu conheço muita gente pelo mundo afora, eu estudei em várias cidades, então sempre tenho um amigo que pode me ajudar, no Japão, em Nova York. Onde não tem, eu fico desesperada. Somos eu, Deus e a câmera.

FOLHA - Você o filma em casa?
CLÁUDIA -
Eu comecei filmando muito disso. No começo, era a minha maior curiosidade: poxa, por que ele faz tanto mistério com as coisas? Mas depois eu vi que isso daí não é nada, é mais uma pessoa no mundo, entendeu? São banalidades. A contribuição desse meu trabalho para o Brasil não é mostrar ele em casa acordando. É o tanto de música que eu filmei ele cantar que ele nunca gravou. Eu sempre falo: "Poxa, João, não esquece dessa". Ah, mas eu ainda não treinei. Eu falo: "Ah, mas vai ficar pra parede, João? Essa beleza vai ficar pra parede?" Ele criou uma linguagem que pode ser feita em qualquer música de qualquer nacionalidade. Tanto é que ele canta "Estate", do Bruno Martino, que fala [Cláudia começa a cantar]: "Estate, sei calda come i baci che ho perduto". [Depois, traduzindo]: "É verão, quente como o beijo que eu perdi, que brilhava de trás da montanha.
É verão, é quente como o meu amor que se foi, que hoje eu tento cancelar no meu coração. Verão que brilhava atrás de uma montanha. Hoje ele desce quente na minha cabeça. Hoje ele desce no solo com furor".
São as letras que ele pegou para interpretar que são a seleção mais bonita de palavras que eu já ouvi na minha vida inteira, que enriqueceram a minha alma. Não foi à toa que eu fiquei assim, enfim, tão impressionada com a beleza que eu vi.


Texto Anterior: Horário nobre na TV aberta
Próximo Texto: Garota papo firme
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.