São Paulo, segunda-feira, 24 de agosto de 2009

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Bilhetes retratam era turbulenta

Despachos de 1951 mostram preocupação com custo de vida; novos manuscritos podem registrar governo até 1954

Pesquisadores pedem cautela em relação a novas descobertas; para jornalista, anotações antecipam comunicação janista

DO ENVIADO A FLORIANÓPOLIS

O segundo governo Vargas (1951-54) foi um período turbulento na vida política brasileira, lançou as bases para o desenvolvimentismo que virou marca registrada de JK e culminou com o suicídio dramático do pai do getulismo.
A fundação da Petrobras (em 53), a luta pela criação da Eletrobrás, a crise com a imprensa e a pressão dos EUA para o envio de tropas brasileiras à Guerra da Coreia ocuparam o cotidiano de Getúlio Vargas e podem ser acompanhadas pelos bilhetes que escrevia diariamente ao chefe da Casa Civil, o polêmico Lourival Fontes, ex-chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda.
É esse rico manancial que agora começa a ser revelado, com a descoberta dos manuscritos de Getúlio escritos entre 1951 e 1954. A existência desses documentos era conhecida desde 1966, quando o jornalista Glauco Carneiro, da extinta "O Cruzeiro", fez uma longa entrevista com Fontes -então em busca da reabilitação de sua imagem. A revista publicou o conteúdo de vários deles.
Mas a verdadeira dimensão desse acervo, que teve destino incógnito com a morte de Fontes, em 1967, ainda é desconhecida. Hoje, Carneiro, 70, lembra que o ex-chefe da Casa Civil mostrou vários bilhetes para ilustrar os depoimentos. "Ele morava sozinho em Copacabana. Havia uma pilha de pastas. Nunca levei um documento para a Redação ou para casa, o fotógrafo registrava os que eu selecionava para a reportagem."

Sigilo por 40 anos
Os documentos foram agora achados pelo psiquiatra Francisco Baptista Neto, 64, ex-oficial de gabinete da Casa Civil do governo Castelo Branco, que mora em Florianópolis. Estavam em Brasília com seu pai, o ex-governador sergipano Lourival Baptista. Seu xará Lourival Fontes havia pedido que os guardasse por 40 anos -para preservar a imagem de Getúlio, acredita Baptista Neto.
A primeira caixa do acervo tem 494 bilhetes, que são de 1951. São despachos administrativos, pedidos de providências junto a autoridades e ministérios, há um pedido de auxílio a um apadrinhado, ordens de demissão. As orientações e um esboço de discurso citam em vários momentos imagens getulistas conhecidas, como seu papel de protetor do trabalhador e promotor do desenvolvimento. Também há preocupação com o custo de vida.
Lourival Baptista, 94, vive em Brasília e está com a saúde debilitada. Entre seus pertences foi encontrada recentemente outra caixa. Pode conter documentos que avançam até 1954. Segundo a reportagem de "O Cruzeiro", os bilhetes vão até as vésperas do suicídio de Vargas -o último trataria de despachos corriqueiros.
O pesquisador Francisco Reynaldo Barros, especialista no período getulista, diz que "não se sabia que havia essa quantidade de bilhetes". "Estamos muito curiosos", afirmou.
O jornalista José Augusto Ribeiro, que colaborou na matéria de 66, diz que a visão de Getúlio na época era "perturbada pela paixão" e que os bilhetes mostram a "natureza administrativa" da era Vargas. Também ressalta que os manuscritos, em alguma medida, antecipam os famosos bilhetes de Janio Quadros. Ainda que Getúlio não tivesse pensado seus bilhetes como instrumento de propaganda. Eram reservados.
O historiador Marco Antonio Villa, professor de história na Universidade Federal de São Carlos (SP), diz que os documentos são muito importantes e refletem um momento chave, que antecipou o governo JK e marcou uma transformação importante no país, como a criação da Petrobras.
O historiador Boris Fausto, autor de "A Revolução de 30", alerta que os documentos podem não modificar a compreensão da era Vargas. "Havia muita expectativa quando os diários de Getúlio foram descobertos, nos anos 90, mas não trouxeram grandes novidades."
Regina da Luz Moreira, pesquisadora do CPDOC-FGV, trabalhou nos diários e também pede cautela. Diz que os bilhetes podem "levantar lebres ou consolidar versões, ajudar a confrontar eventos, mas não trazer informações novas".
A diretora de difusão artística da Fundação Catarinense de Cultura, Mary Elizabeth Benedet Garcia, e o jornalista Toninho Vaz ajudaram Baptista Neto a avaliar os documentos e planejam a edição de um livro que contará a história dos bilhetes. (MARCOS STRECKER)


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