São Paulo, segunda-feira, 24 de setembro de 2001

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CINEMA
Autor e diretor de "Lavoura Arcaica" falam à Folha

Da semente ao fruto


Raduan Nassar e Luiz Fernando Carvalho discutem o processo de criação e produção do premiado longa


Divulgação
A atriz Simone Spoladore, que interpreta Ana no filme "Lavoura Arcaica", em cena do longa


MARILENE FELINTO E JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTAS DA FOLHA

"Um verdadeiro encontro." Assim o escritor Raduan Nassar, 65, e o cineasta Luiz Fernando Carvalho, 41, definem a relação que se criou entre eles durante a realização do filme "Lavoura Arcaica", dirigido pelo segundo a partir do romance do primeiro.
O filme, que recebeu o prêmio de melhor contribuição artística no Festival de Montréal, terá sua primeira exibição no Brasil em 3 de outubro, no Festival Rio BR. Depois passará na Mostra Internacional de São Paulo. Entrará em cartaz no final de outubro.
Estrelado por Selton Mello e Raul Cortez, "Lavoura" é ambientado numa família de origem árabe no interior do Brasil, meio em que Nassar foi criado. O escritor ficou tão empolgado com o filme que topou conversar sobre ele com Carvalho, com exclusividade para a Folha. A conversa foi em sua casa, em São Paulo.

Folha - Como foi a relação de vocês na realização do filme?
Luiz Fernando Carvalho -
Primeiro tivemos vários contatos, muito produtivos, mas sem grande envolvimento. Nossa aproximação veio quando eu já estava com o filme quase pronto, recebendo certa pressão dos produtores para diminuir sua duração e torná-lo mais comercial. Estava com três horas e meia. Queriam que eu cortasse para uma hora e 40 minutos. Resisti com unhas e dentes, mas estava meio perdido, me sentindo sozinho, sem interlocutor. Foi então que o Raduan me disse: "Vem para cá". Ele me acolheu e se dispôs a ser meu interlocutor. Isso me deu o prumo necessário para acabar o filme.

Folha - Raduan, qual foi sua primeira impressão do filme?
Raduan Nassar -
Fiquei muito tocado. Fazia muito tempo que eu havia lido o livro pela última vez e nem me passou pela cabeça que ele pudesse surgir assim, se impor como uma coisa tão forte. Então, senti que havia ali um verdadeiro encontro. E olha que eu vi no laboratório, e só uns 40 minutos.

Carvalho - O que o Raduan chama de laboratório é a sala de montagem (risos).

Nassar - E teve outra coisinha. Convidei meu irmão Raja, cinco anos mais velho, para vir aqui em casa ver o filme em vídeo. Ele veio a contragosto, chegou aqui de mau humor, depois de três horas de viagem. O Luiz estava morrendo de medo dele. Ficou ali na cozinha enquanto assistíamos aqui na sala. E ele ouviu quando meu irmão me disse baixinho: "Ele conseguiu. Ele conseguiu".

Carvalho - Foi emocionante. Os irmãos na sala vendo o embate entre os irmãos na tela.

Folha - Você tentou expressar, com meios especificamente cinematográficos, a densidade poética do livro. Como foi isso?
Carvalho -
É. Não queria fazer uma narrativa descritiva, didática, das ações. Entendia o livro como um diário do mundo interior, das vísceras do André [protagonista de "Lavoura Arcaica"". Não o mundo externo, a geografia, a descrição dos ambientes. O que me interessava era uma espécie de cartografia da alma. Tudo no "Lavoura" acontece de dentro para fora. Então, resolvi começar por esses grandes extremos de escuridão e luz e tentar fazer com que a câmera fosse o olho... Pensei em ir desfibrando aquele personagem, até você se identificar com ele.

Folha - Como você lidou com a narração em primeira pessoa?
Carvalho -
Usei a câmera muito como ponto de vista. Tive que escolher com cuidado em que momento essa câmera vira para o personagem, já que se trata de um diário interior dele. Tudo isso era uma reação intuitiva ao que eu lia, porque eu percebi que o Raduan também escrevia com essa necessidade de que aquilo fosse uma revelação, e não uma descrição.

Folha - No livro há indicações de luz ambiente e também de uma luz interior, subjetiva. Como você tratou isso ao filmar?
Carvalho -
Eu não trataria esses elementos em separado. Trabalhei todos eles embolados, de uma forma meio caótica e com a ajuda dos atores. Em certos momentos em que a luz é uma necessidade de subjetivação das imagens, quem me ajudaria a traduzir esse traço na iluminação não era apenas o fotógrafo, mas sim a maneira como o ator fazia aquela cena. A alma dele devia estar escura, ou clara, naquele instante.
Não tinha roteiro. Eu e os atores líamos o livro de cabo a rabo, como se fosse a leitura de uma peça. E o desenho emocional, a imagem que aquilo provocava na gente era muito clara como norteador. Não sabíamos o que ia ser, mas sabíamos o que não queríamos: esse naturalismo massificado, banalizado, que anda por aí, uma iluminação que não contivesse vida, que fosse cheia de verniz, como um comercial de TV.

Folha - Raduan, como foi voltar ao livro tanto tempo depois?
Nassar -
O livro até eu tinha me esquecido, está muito distante. O Luiz é que sabe de cor. Quando comecei a reler algumas passagens, por causa da montagem, eu pensava: "Eu escrevi isso?" (risos). Mas em nenhum momento me situei como autor do livro que estava sendo trabalhado em termos cinematográficos. O filme se sobrepôs ao livro.
Eu fiquei fascinado com o trabalho do Luiz. Então, nem me interessava se pequenas passagens estavam diferentes ou não. E eu achava também que estava muito próximo, de certa forma. Não através de uma linguagem enunciativa, mas através de toda aquela poética, porque eu chamo o filme do Luiz de um "poemão".

Folha - Mas não dói remexer, hoje, no conteúdo do livro?
Nassar -
Não, não, mas aconteceu até uma coisa muito estranha, porque eu estava tão distante da literatura -eu sou um estranho no ninho há mais de 25 anos, certo?- e de repente eu estava na sala de montagem, porque eu comecei a ficar animadinho, sabe?
E fiquei impressionado com o processo de trabalho do Luiz. Achei que ele entrou num processo... de inspiração, de obsessão.

Folha - E você, Raduan, não é obsessivo também?
Nassar -
Eu era obsessivo também, confesso, quando escrevia. Às vezes eu batia 20, 25 vezes a mesma página. Sempre achei que eu fui mais datilógrafo do que escritor [risos]. Mas o Luiz ganha de dez a zero de mim. Uma vez cheguei ao laboratório e peguei o Luiz mexendo na imagem do olho do menino... Porque aquela parafernália faz coisas incríveis também, não é? Ficou uma hora mexendo na pupila do menino.

Folha - Antes dessa fase da montagem, como eram as conversas de vocês?
Carvalho -
A gente conversava sobre as coordenadas do livro como um todo. Fazia uns 20 anos que o Raduan não parava para entrar verticalmente no livro. Então, para mim, eram encontros muito ricos porque em determinados momentos se saía do âmbito do livro em si, da literatura, e Raduan dava suas voltas. Ia para Pindorama [cidade natal do escritor], falava do pai, da mãe, da horta...

Folha - Você chegou a ir à fazenda da filmagem, Raduan?
Nassar -
Fui mais ou menos na marra. Foi uma viagem de oito horas de carro. Mas aí tive uma surpresa muito agradável, tocante até, porque encontrei o pessoal todo muito envolvido. E, quando eu vi a Ana do filme [a atriz Simone Spoladore], eu falei: "Pô, é melhor do que a minha" [risos].

Folha - Formou-se uma espécie de comunidade ali na fazenda, para a preparação do filme?
Carvalho -
Eu achava que o aprendizado de lidar com a terra era a melhor preparação corporal que podia haver. Em vez de contratar preparadores profissionais, nós nos agarramos aos dois peões da fazenda, que foram os nossos mestres da enxada, do arado, da capina, da semeadura. Aluguei essa fazenda, esvaziei e criei como se fosse uma estrutura de escola.

Folha - Como assim?
Carvalho -
Tínhamos uma rotina trabalhando com a terra, extraindo leite das vacas, depois fazíamos improvisações, ioga, aulas de culinária árabe, de bordado árabe, do idioma árabe. Tínhamos aula de dança e visitas de palestrantes que iam falar sobre a obra do Raduan, sobre o tema principal da obra, que é a parábola do filho pródigo. O Leonardo Boff, por exemplo, falou sobre a tradição cristã. Passamos quatro meses na fazenda, antes de filmar.

Folha - Como você traduziu em cinema seu desejo de manter o impacto da obra?
Carvalho -
Todo o aparato técnico foi posto a serviço da improvisação dos atores. Não sabíamos se o ator ia ficar sentado olhando para a frente ou se ia levantar e sair andando. Como eu queria preservar esse seu impulso vital, antes de filmar eu marcava, esquadrinhava o quarto da pensão, definindo pontos de foco possíveis, onde o ator poderia ir num momento de emoção.
Fazendo um paralelo com o processo poético, primeiro tem um fluxo solto e depois, na montagem, é que há uma reflexão sobre esse fluxo.

Folha - Agora com o filme pronto, Raduan, você está revivendo a expectativa de quando publicou o livro?
Nassar -
Quando você publica um livro, está se expondo. Isso é uma coisa com a qual não sei lidar até hoje. Eu me sinto envolvido com o lançamento do filme, mas é um sentimento diferente de quando publiquei o livro. Sou um ancião hoje [risos". Tenho um outro olhar sobre tudo isso.
Quando vejo meu nome no jornal, ainda hoje, eu tenho um choquezinho esquisito, me provoca um mal-estar. Mas não sou o mesmo. Quando escrevi, tive muito envolvimento emocional, vivia um transe maluco. Tomava café, duas garrafas por dia.

Folha - É verdade que a cena do diálogo final entre pai e filho foi a que mais emocionou você?
Nassar -
Toca-me, de fato. Se você me perguntar por que, não sei. É engraçado que até discuti com o Luiz, porque há um momento no filme em que o pai bate no filho com uma vara de marmelo. Meu pai nunca pegou uma vara para me bater. Claro, o personagem não sou eu, mas de alguma forma também me projetei nesse exemplo. Como fazem mil conclusões... Eu já vou ficar, depois do filme, com fama de masturbador inveterado [risos].


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