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São Paulo, quarta-feira, 24 de setembro de 2003

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Mostra em SP revela obra do cineasta Nicholas Philibert, novo expoente francês

olhos nos OLHOS

Divulgação
Cena do documentário "Ser e Ter", de Nicholas Philibert


SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Responsável por um sucesso histórico do cinema francês -quase 2 milhões de espectadores assistiram ao documentário "Ser e Ter" (2002), cuja primeira exibição no Brasil será no próximo domingo-, o cineasta Nicholas Philibert, 52, compara o início de seu singelíssimo filme em torno do ensino de crianças numa escola rural da França ao gênero faroeste.
Em campo aberto, de pé, sob chuva e diante de um inquieto rebanho leiteiro, um homem grita: "Devagar, devagar!", na tentativa de conduzir a manada. As vacas avançam, o homem e seus companheiros recuam. Os adultos erguem cajados, as vacas estacam.
Em seguida a essa cena inaugural do filme, "Ser e Ter" transfere-se para o interior de uma sala de aula, vazia de alunos e professores, mas onde duas tartarugas caminham pelo chão.
"Existe a escola e a natureza, com sua aspereza, sua violência. Como num faroeste, temos a natureza selvagem, a brutalidade do mundo e, depois, esse lugar que é um refúgio, onde aprendemos a viver juntos", diz o diretor.
Mais do que a metáfora de gênero cinematográfico, a comparação de Philibert serve para sintetizar a maneira como encara o próprio tema do filme. "No fundo, a educação é isso. Para vivermos juntos, é preciso renunciar ao que há de mais arcaico em nós."
O diretor diz que o passo lento das tartarugas serve também para avisar o espectador de que "o filme tomará seu tempo".
Serão, a partir desse ponto, cem minutos ao longo dos quais o público conviverá com o professor Georges Lopez e sua turma de alunos, que mistura um pequeno grupo de crianças em fase de alfabetização e outro de pré-adolescentes.
O regime de classe única de estudantes com diferentes idades e graus de formação é comum nas escolas do interior da França.
Philibert disse que a idéia de filmar a rotina escolar de crianças poderia parecer desinteressante a muita gente, mas ele tinha "a convicção de que algo rico e significativo sairia dali".
"Aprender a ler e escrever soa banal para quem já passou por isso, mas é um momento muito importante para quem o vive. É quando precisamos vencer barreiras, afrontar dificuldades e medos, enfrentar o olhar dos outros", afirma.
Há um ano viajando por diversos países para apresentar "Ser e Ter" [Philibert conversou com a Folha, por telefone, do México], o cineasta afirma que "se o filme ultrapassa fronteiras, é porque vai além dessa escolinha em Auvergne. Fala do que é aprender e ensinar, do que é crescer. E nos lembra a todos de que ser criança não é só inocência e despreocupação, mas também medo e dificuldades".
Entre as "dificuldades" que Philibert cita e que o espectador encontrará no filme, estão "o amedrontador mundo dos adultos, a necessidade de encontrar sua personalidade e de desenvolver autoconfiança".
Envolvidos em angústias desse tipo, os personagens de "Ser e Ter" se deixam filmar em diálogos penosos com o professor, em disputas infantis (e outras nem tanto) e em suas tentativas de insubordinação.
Philibert diz que a naturalidade dos personagens diante da câmera é tradução da confiança que adquirem ao perceber que nem ela (a câmera) nem o cineasta estão ali "para filmá-los às escondidas ou para julgá-los ou para registrá-los o tempo todo".
O cineasta diz que, a cada dia, filmava apenas durante cerca de 35 minutos na sala de aula. Todos os alunos foram registrados também em suas casas. Mas só três deles tiveram cenas familiares incluídas no filme.
"Quando fazemos a montagem, é preciso sacrificar muita coisa e, algumas vezes, é preciso sacrificar coisas lindas. A montagem não é um "best of" nem um ponta a ponta das filmagens", diz.
O incomum sucesso de público de "Ser e Ter" -2 milhões de espectadores é considerada uma ótima bilheteria para filmes de ficção e marca inédita para documentários- reforçou em Philibert a idéia de que um documentário não precisa se conter no rótulo de produção pedagógica e ser um "verdadeiro filme de cinema".
"A maioria das pessoas pensa que, pelo pretexto de que filmamos pessoas e situações reais, um documentário deve ser a realidade bruta e não pode atingir as dimensões da metáfora e do poético. Isso não é verdade."


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