São Paulo, quarta-feira, 24 de outubro de 2001

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MARCELO COELHO

"Parade" gira entre a aura e o fetiche da arte moderna

Um painel gigantesco de Picasso, poucas vezes visto em qualquer lugar do mundo; uma série vertiginosa de quadros de Kandinsky, mostrando o nascimento, ano a ano, da pintura abstrata; a famosa roda de bicicleta de Duchamp; um curta-metragem dirigido por Jean Genet; esculturas de Brancusi, Modigliani e Giacometti: 250 obras trazidas do Centro Pompidou, cobrindo todo o século 20, estão na Oca do parque Ibirapuera.
Era para ser -com perdão da breguice do termo- a "mega-exposição" do ano em São Paulo, mas não sei de muita gente que tenha ido ver "Parade" por enquanto. É provável que exposições dedicadas a um único artista sejam mais fáceis de divulgar e que o simples nome de "Parade" não dê conta da riqueza do material exposto. Mas a exposição da Oca é fantástica e fica até janeiro.
Fazia tempo que eu não adotava esse tom meio propagandístico nos artigos e, na verdade, ando bem incomodado com textos elogiosos em geral; de resto, voltar a falar de "cultura" depois dos atentados em Nova York não deixa de ser um tanto estranho. Como se falar de cultura não fosse sempre estranho, aliás.
Acontece que essa questão já estava colocada ao longo de todo o século 20, como a própria exposição parece evidenciar. Depois da Primeira Guerra, o ideal de uma arte recreativa, "bonita", "civilizada", deixou de fazer sentido, e as tentativas de ruptura (ou reatamento) com isso passaram ao centro do debate.
O que me parece interessante em "Parade" é o modo com que se tratou todo o potencial de choque, de ruptura, de "desembelezamento" da arte moderna. Tome-se a famosa roda de bicicleta de Duchamp. Em tese era para ser uma simples roda de bicicleta, um objeto do dia-a-dia -e a intenção de Duchamp, ao colocá-la num museu, teria sido a de contestar as próprias idéias de "obra de arte", de "beleza" etc.
Com o tempo, criou-se um efeito perverso -sem ser "obra de arte" no sentido tradicional, a peça de Duchamp adquiriu um valor de fetiche. O público passa a visitar o museu e querer ver ("conferir", como se diz) a roda de bicicleta que, bem ou mal, é igualzinha a uma roda de bicicleta qualquer.
Mais ainda no caso do famoso urinol: aquilo que era para ser um instrumento de dessacralização da arte passou a ser cultuado, ressacralizado; a crueza prosaica daquela provocação de Duchamp foi como que neutralizada, cercou-se de um respeito místico: "favor não tocar".
Mas essa nova aura, essa ressacralização tinha algo de estranho, de artificial, de autoritário até. O cidadão comum fica irritado. "Como assim? Como é que esse simples urinol, esse quadro em branco, essa lata de sopa, são vendidos a preços astronômicos?" O valor histórico, o valor de "relíquia" desses objetos não se impõe por si mesmo, ao simples olhar do visitante.
Em "Parade", a forma de expor cada obra, a cenografia, como se diz, parece ter-se encarregado de reestetizar, de revalorizar, de cercar de uma aura visível as peças apresentadas ao público. A roda de bicicleta, por exemplo, está meio que esquecida num canto, iluminada de forma oblíqua, projetando uma sombra na parede; revestiu-se de um ar romântico, misterioso, cálido, bastante diverso do tom objetivo, de asserção sarcástica, de blefe que deve ter tido de início.
Na mesma sala da roda de bicicleta, duas cabeças -uma de Brancusi, outra de Modigliani- são apresentadas sob a luz de uma lâmpada giratória. Ao lado, os círculos de uma tela de Kupka. Dominando a sala, há a grande maquete do monumento à revolução de Tatlin (uma torre em espiral). O movimento de descida em espiral será o mesmo que o espectador fará ao percorrer a exposição inteira, que deve ser vista a partir do último andar.
Esse percurso imita a rampa do Guggenheim de Nova York; em outro andar, os quadros de "Parade" são expostos em espécies de cavaletes que homenageiam o modo de exposição imaginado por Lina Bardi para o Masp.
O que significa tudo isso? Se os motivos visuais da espiral e do círculo em movimento compõem, em "Parade", o modo de apresentação das obras, é como se estas deixassem de existir "isoladamente", no ato de ruptura e de autonomia que propuseram a seu tempo, para participar de uma nova forma de tradição, de ordem, de ambientação, de "sentido" -coisas conferidas pelo expositor; uma colagem de obras, uma instalação de quadros e esculturas, por assim dizer.
Claro que isso não desfaz o que cada obra, em si, tem a oferecer; claro, também, que nunca nenhuma obra existiu no total isolamento, na total autonomia com relação à tradição; claro, ainda, que nem toda obra do século 20 estava engajada num projeto de ruptura tão radical quanto o da roda de bicicleta. E podemos entender a ambientação cinematográfica de "Parade" como um esforço conservador, no sentido de um "reembelezamento" das obras; mas também como um passo crítico, à medida que contesta o mero fetichismo, a mera busca turística do "autêntico", do "original", que está presente quando entramos num museu.
Entre o cinema e o turismo, entre a aura e o fetiche, talvez o mundo dos museus e das mega-exposições esteja de fato andando em círculos; justo o oposto de uma "parade" -termo que, aos ouvidos brasileiros, sugere tanto um desfile militar quanto uma interrupção do movimento, tanto um progresso linear quanto a sua suspensão. Eu, aliás, é que paro por aqui, enquanto as marchas militares seguem pela TV.



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