São Paulo, segunda-feira, 24 de outubro de 2005

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NELSON ASCHER

Vítimas e algozes

Um europeu ocidental mediano se considera mais civilizado do que um norte-americano médio (para nem falar de um brasileiro qualquer, um reles botocudo, mas essa é uma história diferente). Nada há de surpreendente nisso.
Vigora hoje em dia uma cultura da vitimização, uma maneira de pré-julgar indivíduos ou grupos segundo a qual quem tenha sofrido direta ou indiretamente alguma injustiça histórica real ou imaginária, mesmo que houvesse sido, se tanto, cometida contra o bisavô de seu bisavô, torna-se moralmente superior.
Mas, antes dessa moda, as pessoas costumavam acreditar que a comunidade, cidade ou país, classe social ou etnia a que pertenciam era melhor do que as demais, e cada um de seus membros, só por ter nascido em tal ou qual lugar, por crescer falando esta ou aquela língua, por rezar para um determinado deus ou para nenhum, era automaticamente melhor, mais nobre, elevado, bonito ou inteligente do que os membros dos grupos rivais.
A moda da vitimização, em vez de alterar um instinto arraigado da espécie, apenas lhe acrescentou novos critérios competitivos de julgamento: "Vocês foram vítimas de genocídio? Bom, nós também. E o nosso foi (ou é) maior". "Vocês foram oprimidos? Nós fomos (ou somos) muito mais." Em suma, a dor de meus concidadãos, compatriotas, correligionários e, portanto, a minha, é sempre mais pungente, atroz, duradoura que a do resto da humanidade.
E não se trata aqui de fetichismo inconseqüente. Com a insistência crescente em direitos coletivos que envolvem, da posse de um território a indenizações justificáveis ou não, uma variedade de benefícios concretos, o juízo histórico retroativo converteu-se, malgrado seu anacronismo (ou seja, a aplicação dos valores de certa época a uma distinta, que nem sonhava com sua futura criação), numa ferramenta política tão útil como maleável.
Europeus ocidentais (e, do lado oposto do continente, os russos), que passaram o último meio milênio aprontando o que bem queriam planeta afora, pareceriam, em princípio, mal colocados para concorrer ao troféu de "coitadinhos". Se houve um expansionismo predatório capaz de competir, no longo prazo, com o deles, este foi, na África, na Ásia e, em especial, em toda a bacia do Mediterrâneo, o islâmico. Ademais, caso descontemos a invasão mongólica de meados do século 13 e, 200 anos depois, a otomana (ambas afetando quase exclusivamente o leste e sudeste balcânico do continente), as piores atrocidades contra europeus, da cruzada destinada a erradicar a heresia albigense na França meridional ao Holocausto, passando pelos expurgos na URSS e seus satélites, foram, a rigor, ocasionadas pelos próprios europeus.
Nem fatos assim, contudo, bastam para que os habitantes do Velho Mundo abram mão de um argumento que lhes evidencie, se não a superioridade em geral, pelo menos suas grandes virtudes. Um francês ingênuo, é verdade, continua se gabando de ser o suposto co-autor, digamos, de "A Comédia Humana", de Balzac, da "Sinfonia Fantástica", de Berlioz, das telas pintadas pelos impressionistas.
O mesmo se aplica a italianos e ingleses, alemães e espanhóis em relação a Dante ou Vivaldi, Shakespeare ou Turner, Goethe ou Wagner, Cervantes ou Velázquez. É como se a genialidade de um criador sepultado há gerações contagiasse e se estendesse a gente que, despida de méritos particulares, detém, todavia, o de haver vindo ao mundo num raio de cem ou 200 quilômetros do lugar em que, outrora, os gênios acima viveram e trabalharam.
Seus vizinhos, porém, que já se imbuíram do clima atual, moralista, ou melhor, moralizante, conhecem as autênticas virtudes locais (virtudes que assumiram subitamente tal estatuto após o apogeu da barbárie continental conhecido como Segunda Guerra) e sabem que, se são superiores, é porque superaram diversos vícios: o belicismo agressivo (e até defensivo), a religiosidade supersticiosa, a cobiça material desmedida, a selvageria capitalista, a repulsa à diversidade cultural, a justiça punitivamente retributiva, a falta de solidariedade social.
Vícios, aliás, de quem? Será que se trata da belicosidade africana ou paquistanesa, da religiosidade muçulmana ou hinduísta, da cobiça das classes dominantes do Terceiro Mundo, do capitalismo selvagem chinês, da xenofobia norte-coreana ou iraniana, da pena capital e da mutilação física a que recorria generosamente o Afeganistão do Taliban e ainda o faz a Arábia Saudita, da falta disseminada de solidariedade com os curdos, os tutsis ruandenses, os budistas indonésios, os sudaneses de Darfur, os milhões de congoleses massacrados, as dezenas de milhões de aidéticos africanos?
Provavelmente não, pois, em todos esses casos, os culpados também podem reivindicar a condição de vítimas -da história, da natureza, de Deus, das circunstâncias, do imperialismo, do FMI, de Hollywood, dos laboratórios farmacêuticos. Nomeá-los tampouco demonstraria muita sensibilidade multicultural. Que inúmeros indivíduos, grupos e povos compartilham, no mínimo, da responsabilidade pelos seus achaques, isso não é algo que se sugira numa roda progressista.
Há, no presente, dois, e somente dois, agentes históricos aos quais se pode atribuir não importa que culpa, que podem ser denunciados e condenados sem que os acusadores corram o risco de resvalar na incorreção política: os EUA e o sionismo. E nesse ponto os europeus estão de acordo com o restante da Terra: como todos são indiscutivelmente suas vítimas, todos são também (não só) moralmente superiores a ambos os algozes.


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