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NELSON ASCHER
Vítimas e algozes
Um europeu ocidental mediano se considera mais civilizado do que um norte-americano médio (para nem falar de
um brasileiro qualquer, um reles
botocudo, mas essa é uma história diferente). Nada há de surpreendente nisso.
Vigora hoje em dia uma cultura
da vitimização, uma maneira de
pré-julgar indivíduos ou grupos
segundo a qual quem tenha sofrido direta ou indiretamente alguma injustiça histórica real ou
imaginária, mesmo que houvesse
sido, se tanto, cometida contra o
bisavô de seu bisavô, torna-se
moralmente superior.
Mas, antes dessa moda, as pessoas costumavam acreditar que a
comunidade, cidade ou país, classe social ou etnia a que pertenciam era melhor do que as demais, e cada um de seus membros, só por ter nascido em tal ou
qual lugar, por crescer falando esta ou aquela língua, por rezar para um determinado deus ou para
nenhum, era automaticamente
melhor, mais nobre, elevado, bonito ou inteligente do que os
membros dos grupos rivais.
A moda da vitimização, em vez
de alterar um instinto arraigado
da espécie, apenas lhe acrescentou novos critérios competitivos
de julgamento: "Vocês foram vítimas de genocídio? Bom, nós também. E o nosso foi (ou é) maior".
"Vocês foram oprimidos? Nós fomos (ou somos) muito mais." Em
suma, a dor de meus concidadãos, compatriotas, correligionários e, portanto, a minha, é sempre mais pungente, atroz, duradoura que a do resto da humanidade.
E não se trata aqui de fetichismo inconseqüente. Com a insistência crescente em direitos coletivos que envolvem, da posse de
um território a indenizações justificáveis ou não, uma variedade
de benefícios concretos, o juízo
histórico retroativo converteu-se,
malgrado seu anacronismo (ou
seja, a aplicação dos valores de
certa época a uma distinta, que
nem sonhava com sua futura
criação), numa ferramenta política tão útil como maleável.
Europeus ocidentais (e, do lado
oposto do continente, os russos),
que passaram o último meio milênio aprontando o que bem queriam planeta afora, pareceriam,
em princípio, mal colocados para
concorrer ao troféu de "coitadinhos". Se houve um expansionismo predatório capaz de competir,
no longo prazo, com o deles, este
foi, na África, na Ásia e, em especial, em toda a bacia do Mediterrâneo, o islâmico. Ademais, caso
descontemos a invasão mongólica de meados do século 13 e, 200
anos depois, a otomana (ambas
afetando quase exclusivamente o
leste e sudeste balcânico do continente), as piores atrocidades contra europeus, da cruzada destinada a erradicar a heresia albigense
na França meridional ao Holocausto, passando pelos expurgos
na URSS e seus satélites, foram, a
rigor, ocasionadas pelos próprios
europeus.
Nem fatos assim, contudo, bastam para que os habitantes do
Velho Mundo abram mão de um
argumento que lhes evidencie, se
não a superioridade em geral, pelo menos suas grandes virtudes.
Um francês ingênuo, é verdade,
continua se gabando de ser o suposto co-autor, digamos, de "A
Comédia Humana", de Balzac,
da "Sinfonia Fantástica", de Berlioz, das telas pintadas pelos impressionistas.
O mesmo se aplica a italianos e
ingleses, alemães e espanhóis em
relação a Dante ou Vivaldi, Shakespeare ou Turner, Goethe ou
Wagner, Cervantes ou Velázquez.
É como se a genialidade de um
criador sepultado há gerações
contagiasse e se estendesse a gente
que, despida de méritos particulares, detém, todavia, o de haver
vindo ao mundo num raio de cem
ou 200 quilômetros do lugar em
que, outrora, os gênios acima viveram e trabalharam.
Seus vizinhos, porém, que já se
imbuíram do clima atual, moralista, ou melhor, moralizante, conhecem as autênticas virtudes locais (virtudes que assumiram subitamente tal estatuto após o
apogeu da barbárie continental
conhecido como Segunda Guerra) e sabem que, se são superiores,
é porque superaram diversos vícios: o belicismo agressivo (e até
defensivo), a religiosidade supersticiosa, a cobiça material desmedida, a selvageria capitalista, a
repulsa à diversidade cultural, a
justiça punitivamente retributiva, a falta de solidariedade social.
Vícios, aliás, de quem? Será que
se trata da belicosidade africana
ou paquistanesa, da religiosidade
muçulmana ou hinduísta, da cobiça das classes dominantes do
Terceiro Mundo, do capitalismo
selvagem chinês, da xenofobia
norte-coreana ou iraniana, da
pena capital e da mutilação física
a que recorria generosamente o
Afeganistão do Taliban e ainda o
faz a Arábia Saudita, da falta disseminada de solidariedade com
os curdos, os tutsis ruandenses, os
budistas indonésios, os sudaneses
de Darfur, os milhões de congoleses massacrados, as dezenas de
milhões de aidéticos africanos?
Provavelmente não, pois, em todos esses casos, os culpados também podem reivindicar a condição de vítimas -da história, da
natureza, de Deus, das circunstâncias, do imperialismo, do FMI,
de Hollywood, dos laboratórios
farmacêuticos. Nomeá-los tampouco demonstraria muita sensibilidade multicultural. Que inúmeros indivíduos, grupos e povos
compartilham, no mínimo, da
responsabilidade pelos seus achaques, isso não é algo que se sugira
numa roda progressista.
Há, no presente, dois, e somente
dois, agentes históricos aos quais
se pode atribuir não importa que
culpa, que podem ser denunciados e condenados sem que os acusadores corram o risco de resvalar
na incorreção política: os EUA e o
sionismo. E nesse ponto os europeus estão de acordo com o restante da Terra: como todos são
indiscutivelmente suas vítimas,
todos são também (não só) moralmente superiores a ambos os
algozes.
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