São Paulo, terça-feira, 24 de outubro de 2006

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BERNARDO CARVALHO

Arte, terceiro setor

O problema começa quando se reduz a arte ao possível, sob o pretexto de que se trata de fazer política

LOGO NA entrada da 27ª Bienal de São Paulo, há um cercado de arame. É uma instalação da sul-africana Jane Alexander. Dentro do cercado, há outra cerca que encerra um gramado onde está uma escultura em forma de ser híbrido, entre ave de rapina e humano. As duas cercas de arame formam um corredor estreito, entre o público e o monstro, com machetes espalhados pelo chão. A curadora Lisette Lagnado considera a obra uma das mais importantes da exposição: "É emblemática dos anos do apartheid". Os machetes representam "as armas brancas que mataram os negros nessa época em que brancos e negros não podiam viver juntos", diz Lagnado em entrevista ao UOL. "Como viver junto" é o tema desta Bienal. E Jane Alexander é uma artista contra o apartheid.
Mais adiante, os argentinos do projeto Eloisa Cartonera montaram uma banquinha onde confeccionam livros artesanais. Num cartaz, o visitante lê: "Projeto auto-sustentável". No segundo andar, o colombiano Alberto Baraya expôs o molde de uma seringueira, feito de látex, resultado de sua residência no Acre e da convivência com ex-seringueiros. No terceiro andar, além da sala onde estão expostos modelos da Daspu (grife criada pelas prostitutas da ONG Davida), o Long March Project procura desmistificar o lugar do artista, em favor do artesão. O projeto chinês insinua, por meio de uma série de papéis recortados (uma das formas mais tradicionais e disseminadas de artesanato na China), que todo mundo é artista.
Diante dessas manifestações, pode parecer difícil entender a razão da polêmica criada pela obra do coletivo dinamarquês Superflex, que ficou fora da mostra (o trio de artistas propunha reapropriar-se dos ingredientes de um refrigerante e, eliminando a marca, converter o lucro aos produtores comunitários). O trabalho estava adequado às diretrizes da Bienal, mas esbarrava em questões legais.
Como nas outras obras citadas, pode até haver confusão nas idéias do Superflex, mas nada para causar surpresa ou espanto. O projeto é feito das melhores intenções. Ninguém que pisa no prédio do Ibirapuera é a favor do apartheid, nem contra o trabalho comunitário e as ações culturais na periferia; ninguém é contra a reciclagem industrial, nem a favor do desmatamento da floresta e da exploração dos trabalhadores pelo capitalismo selvagem; ninguém é contra os direitos das minorias e a inclusão dos excluídos. Nesses pontos, estamos todos de acordo, vivendo juntos em consenso.
O mundo das ONGs é o da falência do Estado, mas também o da desilusão, do desencanto e do pragmatismo. É o contrário do encantamento da arte moderna, quando ainda se acreditava no impossível e no inominável, na potência libertária de uma individualidade autoral e irredutível. Este é o mundo do terceiro setor, onde já não é concebível nem revolução nem utopia. Não é à toa que o fotojornalismo tenha uma presença tão marcante nesta Bienal. Só resta fazer o que é possível, por menor que seja, com o patrocínio e o financiamento de empresas conscientes e filantrópicas. Da política, resta a retórica, o assistencialismo, a banalidade do consenso, o lugar-comum e as pequenas iniciativas, nem por isso menos louváveis. A política foi reduzida na prática ao que já a definia em tese: "a arte do possível". O problema começa quando se decide reduzir também a arte ao possível, sob o pretexto de que se trata de fazer política. A arte é o avesso do possível.
É claro que há uma contradição fundamental entre arte política e mercado. O problema se acirrou no capitalismo tardio com as proporções assumidas pelo mercado de arte num mundo de desigualdades estarrecedoras. A rigor, a arte como forma de resistir e contrariar não poderia estar atrelada e submissa ao mercado. Seria hipocrisia, porém, dizer que os artistas expostos na Bienal, por mais políticos que se proclamem, estejam fora do mercado. Jogando a favor do vento, a curadoria da mostra (mas não só ela, já que a idéia está no ar) resolveu a contradição de um modo curioso: como não pode eliminar o mercado no qual a própria Bienal está inserida, optou por abolir o artista e a arte, sob o espírito das ONGs, substituindo o valor da individualidade autoral pela ação comunitária e o bem comum. Como me disse um artista: se viver junto é isso, me deixem sozinho. De fato, se a arte ainda for um ato de resistência, esse é o primeiro passo político para quem quiser ser artista: contrariar o rebanho e a norma em nome da radicalidade perdida e inesperada do indivíduo.


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