UOL


São Paulo, segunda-feira, 24 de novembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NELSON ASCHER

O bardo galês

Diz uma lenda que, quando o País de Gales (região independente onde se falava uma língua celta) foi conquistado em 1277 por Eduardo 1º da Inglaterra, o monarca, após reunir, num banquete oferecido à nobreza derrotada, os bardos e artistas locais, pediu-lhes que o celebrassem e, como cada qual se recusasse a fazê-lo, mandou-os todos ao cadafalso.
Dylan Thomas, que, nascido em Swansea, em 1914, tornara-se seu maior descendente moderno, sucumbiu meio século atrás, em 1953, não à ira de um rei inglês, mas por causa do apego à certa invenção escocesa. De passagem por Nova York, ao voltar na noite de 3 de novembro para seu hotel, o Chelsea, na rua 30, ele gabou-se de ter entornado "18 straight whiskies" e foi dormir. Na manhã seguinte, ainda teve tempo de beber duas cervejas e reclamar de dores antes de ser levado em coma para o hospital onde morreu, cinco dias mais tarde, aos 39 anos.
Aquilo que em sua poesia remete a raízes especificamente galesas tem, no entanto, menos a ver com qualquer excentricidade pessoal do que com um legado de rebuscamento formal. Já que é o lado fantástico, mágico e misterioso das antigas literaturas célticas que parece ter dado à luz, em Gales, o Ciclo Arturiano e, na Cornualha, a história de Tristão e Isolda, embora associá-lo a elas resulte logo numa interpretação místico-simbólica do que escreveu, isso se deve antes a uma leitura descuidada.
O juízo do crítico espanhol Dámaso Alonso (1898-1990) sobre seu grande compatriota do "Siglo de Oro", don Luis de Góngora y Argote (1561-1627), juízo segundo o qual o mestre do culteranismo seria no fundo menos complexo do que complicado, aplica-se, quase sem reparos, a Thomas. É sobretudo quando se encontram às voltas com um idioma estrangeiro insuficientemente assimilado que a lógica da poesia moderna, com sua sintaxe emaranhada, seus jogos de palavras ou citações obscuras e ironias inacessíveis exceto aos iniciados, costuma escapar aos leitores leigos. E então, seja graças a um raciocínio do tipo "não compreendo o que estou lendo, mas o sujeito devia saber do que falava", seja nascendo de múltiplos mal-entendidos, surgem sentidos esotéricos como os que se incrustaram sobre os escritos do galês.
Sentidos que, de resto, ele não ajudou a dissipar, pois, além de cultivar uma imagem bárdica ou boêmia, reforçando-a também ao declamar, na rádio, sua poesia com uma voz e num tom impressionantes, o poeta tinha um vício ainda maior que o dos destilados. Que seus poemas, transcendendo o perfeccionismo, mostrem-se, às vezes, exageradamente bem-feitos denota um autor que nem sempre sabia onde parar de elaborá-los, algo que, aliado a uma vagueza proposital, deixava-o suspenso entre as acepções positiva e pejorativa do termo "barroco".
Frequentados atentamente, porém, seus melhores poemas (não muitos) exibem um caráter elegíaco que se beneficia tanto de uma solenidade próxima à da Bíblia anglicana como do ritmo pausado que o retorcimento sintático lhes confere. O ápice de sua atividade (que abrangia contos, narrativas autobiográficas e peças radiofônicas) coincidiu com a Segunda Guerra, e sua poesia mais pungente, celebrando as vítimas desta, foi, pelas ondas da BBC, ouvida e apreciada em toda a extensão das Ilhas Britânicas.
Por mais tentador que seja aproximar-se de "E a Morte Não Irá se Opor" ("And Death Shall Have No Dominion") através de tal prisma, como se se referisse aos mortos na Batalha do Atlântico, o texto, que antecede de seis anos o conflito, saiu primeiro em 1933, quando Thomas estava no final da adolescência. Recentemente o poema reapareceu, mencionado por Chris Kelvin (George Clooney), no "remake" que Steven Soderbergh fez, em 2002, do filme "Solaris" (1972) do russo Andrei Tarkovsky. Seja como for, essa elegia (que, de tão célebre, nem precisa ser acompanhada do original, porque este pode ser achado sem dificuldades, inclusive lido pelo autor, na internet) prenuncia perfeitamente as da década seguinte.


Texto Anterior: Cinema: Feira expõe país para mercado estrangeiro
Próximo Texto: Orgânicas elétricas
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.