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NELSON ASCHER
O bardo galês
Diz uma lenda que, quando
o País de Gales (região independente onde se falava uma língua celta) foi conquistado em 1277 por Eduardo 1º da Inglaterra, o monarca, após reunir, num
banquete oferecido à nobreza
derrotada, os bardos e artistas locais, pediu-lhes que o celebrassem
e, como cada qual se recusasse a
fazê-lo, mandou-os todos ao cadafalso.
Dylan Thomas, que, nascido em
Swansea, em 1914, tornara-se seu
maior descendente moderno, sucumbiu meio século atrás, em
1953, não à ira de um rei inglês,
mas por causa do apego à certa
invenção escocesa. De passagem
por Nova York, ao voltar na noite
de 3 de novembro para seu hotel,
o Chelsea, na rua 30, ele gabou-se
de ter entornado "18 straight
whiskies" e foi dormir. Na manhã
seguinte, ainda teve tempo de beber duas cervejas e reclamar de
dores antes de ser levado em coma para o hospital onde morreu,
cinco dias mais tarde, aos 39
anos.
Aquilo que em sua poesia remete a raízes especificamente galesas
tem, no entanto, menos a ver com
qualquer excentricidade pessoal
do que com um legado de rebuscamento formal. Já que é o lado
fantástico, mágico e misterioso
das antigas literaturas célticas
que parece ter dado à luz, em Gales, o Ciclo Arturiano e, na Cornualha, a história de Tristão e
Isolda, embora associá-lo a elas
resulte logo numa interpretação
místico-simbólica do que escreveu, isso se deve antes a uma leitura descuidada.
O juízo do crítico espanhol Dámaso Alonso (1898-1990) sobre
seu grande compatriota do "Siglo
de Oro", don Luis de Góngora y
Argote (1561-1627), juízo segundo
o qual o mestre do culteranismo
seria no fundo menos complexo
do que complicado, aplica-se,
quase sem reparos, a Thomas. É
sobretudo quando se encontram
às voltas com um idioma estrangeiro insuficientemente assimilado que a lógica da poesia moderna, com sua sintaxe emaranhada,
seus jogos de palavras ou citações
obscuras e ironias inacessíveis exceto aos iniciados, costuma escapar aos leitores leigos. E então, seja graças a um raciocínio do tipo
"não compreendo o que estou lendo, mas o sujeito devia saber do
que falava", seja nascendo de
múltiplos mal-entendidos, surgem sentidos esotéricos como os
que se incrustaram sobre os escritos do galês.
Sentidos que, de resto, ele não
ajudou a dissipar, pois, além de
cultivar uma imagem bárdica ou
boêmia, reforçando-a também ao
declamar, na rádio, sua poesia
com uma voz e num tom impressionantes, o poeta tinha um vício
ainda maior que o dos destilados.
Que seus poemas, transcendendo
o perfeccionismo, mostrem-se, às
vezes, exageradamente bem-feitos denota um autor que nem
sempre sabia onde parar de elaborá-los, algo que, aliado a uma
vagueza proposital, deixava-o
suspenso entre as acepções positiva e pejorativa do termo "barroco".
Frequentados atentamente, porém, seus melhores poemas (não
muitos) exibem um caráter elegíaco que se beneficia tanto de
uma solenidade próxima à da Bíblia anglicana como do ritmo
pausado que o retorcimento sintático lhes confere. O ápice de sua
atividade (que abrangia contos,
narrativas autobiográficas e peças radiofônicas) coincidiu com a
Segunda Guerra, e sua poesia
mais pungente, celebrando as vítimas desta, foi, pelas ondas da
BBC, ouvida e apreciada em toda
a extensão das Ilhas Britânicas.
Por mais tentador que seja
aproximar-se de "E a Morte Não
Irá se Opor" ("And Death Shall
Have No Dominion") através de
tal prisma, como se se referisse aos
mortos na Batalha do Atlântico, o
texto, que antecede de seis anos o
conflito, saiu primeiro em 1933,
quando Thomas estava no final
da adolescência. Recentemente o
poema reapareceu, mencionado
por Chris Kelvin (George Clooney), no "remake" que Steven Soderbergh fez, em 2002, do filme
"Solaris" (1972) do russo Andrei
Tarkovsky. Seja como for, essa
elegia (que, de tão célebre, nem
precisa ser acompanhada do original, porque este pode ser achado sem dificuldades, inclusive lido
pelo autor, na internet) prenuncia perfeitamente as da década
seguinte.
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