São Paulo, sábado, 24 de novembro de 2007

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Livros

Viúva comanda "Borges road show"

No país para o lançamento das obras completas pela Cia. das Letras, Maria Kodama demonstra o que faz há 20 anos: falar sobre o autor

"Ficções" é um dos primeiros a chegar às livrarias; até 2010, editora recolocará no mercado todos os textos do argentino, em 23 volumes

Mariana Eliano/Folha Imagem
Maria Kodama, 62, que faz leituras no Brasil


SYLVIA COLOMBO
ENVIADA ESPECIAL A BUENOS AIRES

Maria Kodama é uma mulher inquieta. Magra, e aparentando menos do que os seus 62 anos, abre ela mesma as portas da Fundação Jorge Luis Borges, no bairro da Recoleta, em Buenos Aires. Na seqüência, começa a despachar os problemas. Primeiro, o que fazer com o ar-condicionado quebrado da nova hemeroteca; depois, saber do que precisa a pesquisadora estrangeira que veio consultar originais do autor.
Pára, dá entrevista à Folha, amável, mas olhando discretamente para o relógio, posa para as fotos e logo já está entretida com uma pilha de diplomas para assinar. São os prêmios que serão entregues a adolescentes que participaram de seu concurso anual de haicais, baseados na obra de seu marido.
Kodama e seu "Borges road show" chegam ao Brasil amanhã. Durante a próxima semana, a viúva do escritor argentino (1899-1986) demonstrará em São Paulo aquilo que é sua profissão já há mais de 20 anos: falar sobre Borges.
Desde a morte do escritor, Kodama viaja pelo mundo, dá conferências, participa de eventos relacionados a efemérides e reedições, concede entrevistas. A essa altura, está claro que ela não tem mais nada novo para dizer sobre Borges. Ainda assim, persiste. Parece um soldado determinado a cumprir uma mesma missão até o fim de seus dias.
Sua visita ao Brasil deve-se ao lançamento de uma nova edição das obras completas do autor, pela Companhia das Letras. A programação começou ontem, com a abertura de uma exposição de fotos. A partir de segunda, haverá debates e leituras.
"Gosto de falar em público, mas é difícil encontrar o equilíbrio. Se me meto num detalhe mais hermético, sei que parte da sala não vai entender. Também não posso parecer tonta para aqueles que sabem", diz.
Os comentários mais comuns que ouve das platéias leigas, diz ela, é que a obra de Borges é "difícil". "Aí pergunto o que leram e geralmente ouço que foram os livros mais complexos, os primeiros."
Para Kodama, leitores novatos devem, justamente, começar a ler Borges pelas suas últimas obras. "Ele foi depurando seu estilo ao longo da vida. No princípio, sua prosa era mais intrincada, mas depois percebeu que devia mudar."
Aos principiantes, ela recomenda dois títulos tardios: "Os Conjurados" (1985) e "Atlas" (1984), espécie de diário de viagens escrito junto com Kodama. "Por meio deles os leitores podem ir se acostumando aos temas de Borges, que são sempre os mesmos. Só que aí eles estão mais claros. O "Atlas" tem reflexões lindas e que não estão em forma de prosa retorcida."
Os quatro primeiros títulos que chegam às livrarias na próxima semana e dão início à "Coleção Borges" são "Ficções" (1944), "Outras Inquisições" (1952), "Primeira Poesia" (1923/29) e "O Livro dos Seres Imaginários" (1967).
Até 2010, a Companhia das Letras recolocará no mercado todos os textos do autor, em 23 volumes. Boa parte deles será retraduzida direto do original, embora algumas traduções -como a de Josely Vianna Baptista para "Primeira Poesia"- estejam sendo mantidas de acordo com a edição anterior, pela editora Globo.

Encrenqueira
Kodama tem fama de encrenqueira no meio literário. Herdeira dos direitos autorais de Borges, já impediu novas edições e tirou de circulação antigas. É acusada de suprimir dedicatórias e referências a outras mulheres de seus poemas. Também lançou no mercado livros que Borges não desejava ver reeditados e, ainda hoje, inferniza a vida de biógrafos com quem não concorda.
O caso mais sério deu-se com a editora francesa Gallimard, que, no ano passado, foi impedida de reeditar as "Obras Completas" do argentino, com alterações sugeridas pelo editor Jean-Pierre Bernès, a partir de conversas gravadas entre ele e Borges antes de sua morte.
Kodama diz apenas que sua tarefa é preservar a obra e impedir que reapareça no mercado com novos erros. "É preciso estar muito atenta com um autor como ele, pois qualquer alteração ou errata malfeita pode mudar o que criou", diz.
Ela menciona o caso do famoso conto "O Jardim de Veredas que se Bifurcam". "Muitos o traduzem para "o jardim das veredas", mas o correto é "o jardim de veredas". Parece um detalhe, mas no primeiro caso estaríamos falando de um conjunto fechado de jardins, quando o que Borges quis dizer era que eles eram infinitos. Ou seja, há pessoas que não conseguem sequer entender o universo dele, e querem fazer traduções", diz, indignada.
Mais de 40 anos mais jovem que Borges, Kodama lembra a primeira vez em que ouviu falar dele. "Tinha cinco anos e tomava aulas de inglês de uma professora que lia trechos de livros de que gostava e me fazia um resumo em espanhol. Lia Shakespeare, Bernard Shaw, e um dia trouxe "Two English Poems" [1934], de Borges. Não entendi nada, mas aquilo me tocou."
Aos 12, Kodama foi levada por um amigo de seu pai para assistir à uma conferência de Borges. "Também não entendi uma palavra, mas fiquei encantada." Só quando ela tinha 16 anos eles passaram a ter uma relação de professor e aluna. Mais tarde, passou a ajudá-lo nas leituras e a acompanhá-lo em viagens. Em 1986, casaram-se no Paraguai -Borges era divorciado e a lei argentina não permitia o segundo matrimônio. Foram para Genebra, onde ele quis passar os últimos dias.
Quase cego e tratando-se de um câncer de fígado, Borges precisava de alguém que lesse para ele e o ajudasse a escrever. Kodama foi essa pessoa. "Comprávamos muitos livros, ele queria as novas edições dos clássicos que já conhecia, para conferir as diferenças, as novas traduções. Sempre movido por um espírito de investigador da língua e de suas mudanças."
Poucos meses antes da morte de Borges, o casal veio ao Brasil. Kodama diz que seus comentários sobre o país sempre foram de admiração pelo seu tamanho, pela quantidade de habitantes e pela variedade de plantas e insetos que imaginava viverem nas suas selvas. "Ele dizia que, no Brasil, era possível sentir o peso do mundo".


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