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ARTIGO
Ensaio demonstra como a Igreja Católica construiu o Ocidente
JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O escritor italiano Umberto Eco confessou recentemente que, neste Natal, haverá
presépio lá em casa. A confissão
espanta: Eco não é católico, não é
cristão, não é crente em nenhum
tipo de espiritualidade. Como explicar esse gesto eminentemente
religioso?
A forma mais imediata de responder passa pelo óbvio: montar
o presépio e celebrar o Natal não é
uma simples atitude religiosa. É
também, ou sobretudo, uma manifestação histórica e cultural: Eco
irá erguer o presépio para os seus
netos, da mesma forma que seu
pai erguia o presépio para ele.
Deus, ou a crença em Deus, tem
pouco a ver com o assunto.
É precisamente essa dimensão
-a dimensão histórica e cultural
do catolicismo- que Thomas E.
Woods relata num dos ensaios
mais notáveis de 2005. Woods,
educado em Yale e Columbia,
pretende vencer um preconceito
pela defesa de uma hipótese. O
preconceito é, naturalmente, o
preconceito anticatólico: a idéia
de que a Igreja Católica foi elemento de atraso na construção da
civilização ocidental. Woods desarma esse preconceito e avança
com uma defesa: a Igreja Católica
construiu a civilização ocidental e
foi responsável por valores ou instituições que fazem parte do nosso cotidiano.
O ponto de partida para Woods
é a desagregação do Império Romano às mãos dos bárbaros, nos
séculos 4º e 5º. O papel da igreja
começou por ser um papel de resgate: salvar a herança greco-latina
pela ação concertada de seus clérigos e monges. O monaquismo
europeu, sobretudo a partir do século 8º, foi decisivo: não apenas
culturalmente, pela cópia de textos antigos, pela preservação da literacia e do ensino. Foi também
importante ao desenvolver novas
técnicas de cultivo e produção
agrícola, que proporcionaram um
período de crescimento nos finais
da Alta Idade Média, ou seja, a
partir do século 10º. Quando você,
caro leitor, abrir uma garrafa de
champanhe na noite de Natal
-ou na passagem de ano- não
se esqueça de brindar mentalmente a estes primeiros monges.
O champanhe foi invenção deles.
Aliás, não apenas o champanhe:
a própria idéia de universidade,
que emerge na segunda metade
do século 12, deveu-se ao papel
pedagógico da igreja. As universidades -como em Oxford ou Paris- começaram por ser espaços
de debate lógico e de procura
científica. A própria concepção de
um Deus criador facilitou essa
busca: se Deus criou o mundo, isso pressupõe a existência de leis
naturais que cabe aos homens
descobrir racionalmente. A cultura escolástica permitiu, desde logo, uma "despersonalização" do
mundo natural, atitude contrária
ao animismo das culturas antigas,
onde o universo surgia dominado
por entidades caprichosas e imprevisíveis, porque dotadas de vida própria.
O ensino procura essas leis:
através do "quadrivium" -o estudo da aritmética, da geometria,
da música, da astronomia, que
permite a contemplação do universo; e através do "trivium" -o
estudo da gramática, da retórica e
da lógica, que possibilita a articulação racional dessa contemplação. É nesse contexto que surgem
alguns dos principais nomes da
ciência medieval: Roger Bacon
(1214-1292), em Oxford, matemático eminente, que no seu "Opus
Maius" defende a importância da
experiência e da experimentação
como formas seguras de conhecimento científico. O mesmo com
Alberto Magno, professor de Tomás de Aquino e um dos nomes
principais do naturalismo do século 13.
Mas o contributo da igreja não
se limita à pedagogia e à ciência. A
história da igreja funde-se e confunde-se com a história da arte
ocidental. Tal só foi possível pela
oposição da igreja às correntes
iconoclastas que, nos séculos 8º e
9º, rejeitavam a veneração de imagens ou figuras religiosas. Essa
oposição permitiu a elevação do
mundo material a um novo patamar. A catedral gótica seria o supremo exemplo dessa atitude,
bem como o florescimento artístico pós-Giotto, com o patrocínio
dos papados de Júlio 2º (1503-1513) ou Leão 10º (1513-1521).
Por último, se a igreja construiu
materialmente uma civilização,
ela contribuiu moralmente para
estabelecer a basilar dignidade da
vida humana: a idéia de que todos
os homens têm direitos "naturais", inscritos no coração humano pelo criador, tal como Francisco de Vitoria ou Bartolomé de las
Casas o afirmaram na defesa vigorosa das populações indígenas da
América do Sul. A idéia de "direitos naturais", que nenhum poder
secular pode destruir, teria implicações políticas decisivas na história moderna.
É por tudo isso que, no Natal, fazer o presépio não será uma exclusividade de crentes. Se Deus é
uma questão de fé, o catolicismo é
uma questão histórica: a semente
da civilização ocidental e a identidade do que temos e somos. Proponho um brinde. Com champanhe, certamente.
João Pereira Coutinho é colunista do
jornal português "Expresso", entre outras publicações. Ele escreve quinzenalmente para a Folha Online. E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com
How the Catholic Church Built Western Civilization
Autor: Thomas E. Woods Jr.
Editora: Regnery
Quanto: US$ 29,95 (R$ 68); 256 págs.
Onde encontrar: www.amazon.com
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