São Paulo, sábado, 24 de dezembro de 2005

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ARTIGO

Ensaio demonstra como a Igreja Católica construiu o Ocidente

JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O escritor italiano Umberto Eco confessou recentemente que, neste Natal, haverá presépio lá em casa. A confissão espanta: Eco não é católico, não é cristão, não é crente em nenhum tipo de espiritualidade. Como explicar esse gesto eminentemente religioso?
A forma mais imediata de responder passa pelo óbvio: montar o presépio e celebrar o Natal não é uma simples atitude religiosa. É também, ou sobretudo, uma manifestação histórica e cultural: Eco irá erguer o presépio para os seus netos, da mesma forma que seu pai erguia o presépio para ele. Deus, ou a crença em Deus, tem pouco a ver com o assunto.
É precisamente essa dimensão -a dimensão histórica e cultural do catolicismo- que Thomas E. Woods relata num dos ensaios mais notáveis de 2005. Woods, educado em Yale e Columbia, pretende vencer um preconceito pela defesa de uma hipótese. O preconceito é, naturalmente, o preconceito anticatólico: a idéia de que a Igreja Católica foi elemento de atraso na construção da civilização ocidental. Woods desarma esse preconceito e avança com uma defesa: a Igreja Católica construiu a civilização ocidental e foi responsável por valores ou instituições que fazem parte do nosso cotidiano.
O ponto de partida para Woods é a desagregação do Império Romano às mãos dos bárbaros, nos séculos 4º e 5º. O papel da igreja começou por ser um papel de resgate: salvar a herança greco-latina pela ação concertada de seus clérigos e monges. O monaquismo europeu, sobretudo a partir do século 8º, foi decisivo: não apenas culturalmente, pela cópia de textos antigos, pela preservação da literacia e do ensino. Foi também importante ao desenvolver novas técnicas de cultivo e produção agrícola, que proporcionaram um período de crescimento nos finais da Alta Idade Média, ou seja, a partir do século 10º. Quando você, caro leitor, abrir uma garrafa de champanhe na noite de Natal -ou na passagem de ano- não se esqueça de brindar mentalmente a estes primeiros monges. O champanhe foi invenção deles.
Aliás, não apenas o champanhe: a própria idéia de universidade, que emerge na segunda metade do século 12, deveu-se ao papel pedagógico da igreja. As universidades -como em Oxford ou Paris- começaram por ser espaços de debate lógico e de procura científica. A própria concepção de um Deus criador facilitou essa busca: se Deus criou o mundo, isso pressupõe a existência de leis naturais que cabe aos homens descobrir racionalmente. A cultura escolástica permitiu, desde logo, uma "despersonalização" do mundo natural, atitude contrária ao animismo das culturas antigas, onde o universo surgia dominado por entidades caprichosas e imprevisíveis, porque dotadas de vida própria.
O ensino procura essas leis: através do "quadrivium" -o estudo da aritmética, da geometria, da música, da astronomia, que permite a contemplação do universo; e através do "trivium" -o estudo da gramática, da retórica e da lógica, que possibilita a articulação racional dessa contemplação. É nesse contexto que surgem alguns dos principais nomes da ciência medieval: Roger Bacon (1214-1292), em Oxford, matemático eminente, que no seu "Opus Maius" defende a importância da experiência e da experimentação como formas seguras de conhecimento científico. O mesmo com Alberto Magno, professor de Tomás de Aquino e um dos nomes principais do naturalismo do século 13.
Mas o contributo da igreja não se limita à pedagogia e à ciência. A história da igreja funde-se e confunde-se com a história da arte ocidental. Tal só foi possível pela oposição da igreja às correntes iconoclastas que, nos séculos 8º e 9º, rejeitavam a veneração de imagens ou figuras religiosas. Essa oposição permitiu a elevação do mundo material a um novo patamar. A catedral gótica seria o supremo exemplo dessa atitude, bem como o florescimento artístico pós-Giotto, com o patrocínio dos papados de Júlio 2º (1503-1513) ou Leão 10º (1513-1521).
Por último, se a igreja construiu materialmente uma civilização, ela contribuiu moralmente para estabelecer a basilar dignidade da vida humana: a idéia de que todos os homens têm direitos "naturais", inscritos no coração humano pelo criador, tal como Francisco de Vitoria ou Bartolomé de las Casas o afirmaram na defesa vigorosa das populações indígenas da América do Sul. A idéia de "direitos naturais", que nenhum poder secular pode destruir, teria implicações políticas decisivas na história moderna.
É por tudo isso que, no Natal, fazer o presépio não será uma exclusividade de crentes. Se Deus é uma questão de fé, o catolicismo é uma questão histórica: a semente da civilização ocidental e a identidade do que temos e somos. Proponho um brinde. Com champanhe, certamente.


João Pereira Coutinho é colunista do jornal português "Expresso", entre outras publicações. Ele escreve quinzenalmente para a Folha Online. E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

How the Catholic Church Built Western Civilization
Autor:
Thomas E. Woods Jr.
Editora: Regnery
Quanto: US$ 29,95 (R$ 68); 256 págs.
Onde encontrar: www.amazon.com


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