São Paulo, segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

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Editora alternativa faz livros e arte a partir de papelão

Sediado em SP, projeto Dulcinéia Catadora usa textos em papel xerocado e cria capas a partir de material reutilizado

Filhos de catadores e ex-meninos de rua ilustram capas para obras de autores que incluem Haroldo de Campos e ex-sem-teto

Fernando Donasci/Folha Imagem
Jucilene Alves da Cruz, 17, que ganha R$ 15 por três horas de trabalho na Dulcinéia Catadora


RAQUEL COZER
DA REPORTAGEM LOCAL

Páginas xerocadas de textos de Manoel de Barros, Haroldo de Campos, Jorge Mautner e outros chegam às dezenas a um quartinho de cerca de 20 m2 no subsolo de uma casa na Vila Madalena, onde ganham capas de papelão, pintadas à mão.
Não é bem a idéia que se tem de uma editora, mas é o que, com o argumento de ser também coletivo de arte e trabalho social, o projeto Dulcinéia Catadora vem fazendo há quase um ano em São Paulo.
"Nada aqui é tradicional nem convencional", define a coordenadora Lúcia Rosa, 53, artista plástica, enquanto se ajeita num banco ao lado do depósito de livros -uma bancada colorida em que identificar algum dentre os títulos empilhados parece tarefa das mais árduas.
Dulcinéia Catadora é a "irmã" mais nova da iniciativa argentina Eloísa Cartonera, criada em 2003 e cujo trabalho feito por escritores, artistas e filhos de catadores de papelão (que pintam as capas) ficou conhecido no Brasil em 2006, quando participou da 27ª Bienal de SP. Os projetos, independentes um do outro, têm ainda similares no Peru, na Bolívia e no Paraguai.
Dulcinéia não tem subsídio e se ajeita como dá. Ajuda não falta: o quarto-sede foi cedido pelo projeto Aprendiz, os textos são liberados por todos os autores convidados a participar (Haroldo de Campos, que morreu em 2003, liberara os seus para Eloísa Cartonera).
O formato sofreu mudanças por aqui. Lúcia quis somar aos nomes do catálogo autores "em situação precária". Isso coloca, junto com os veteranos do primeiro parágrafo, gente como o ex-sem-teto Sebastião Nicomedes. A pintura das capas também não fica só a cargo de filhos de catadores. Parte da equipe é formada por menores que viviam nas ruas antes de ganharem abrigo em um lar em Pinheiros.
O nome Dulcinéia veio de uma catadora paulistana que, durante a Bienal, proveu a Eloísa Cartonera de material. "Acho forte, como ela", diz Lúcia. Calhou de ser o mesmo nome do amor idealizado de Dom Quixote, o que dá um ar romântico ao projeto. "É a nossa micro-utopia", define a artista.
O ideal vem tomando formas palpáveis. As vendas começaram numa média de 80 por mês e hoje, segundo a artista, chegam a 400. "Vamos fazendo conforme a procura", conta. É verdade que a produção depende mais da venda do mês anterior que propriamente de encomendas. "Quando acaba o mês, faço as contas para saber por quantos dias por semana poderei chamar os meninos, e disso depende o mês seguinte."
Os jovens ganham de R$ 15 a R$ 30 de diária. Os livretos, de até 32 páginas, são vendidos a R$ 5 em locais como a Mercearia São Pedro, em São Paulo, e unidades do Sesc.

História da caixa
"É um coletivo, não só um projeto social", esclarece Lúcia. "Eles e eu pintamos juntos", diz. Atenta, no outro canto da mesa, Jucilene Alves da Cruz, 17, camiseta lambuzada de tinta, levanta uma capa recém-pintada. "Olha", diz, orgulhosa, antes de notar o estrago: "Ai!".
Lúcia explica para a reportagem: "A gente pinta de um lado só". E para Jucilene, que tinha pintado o outro lado de uma capa já pintada, diz, com jeito: "Desse montinho aí todos já estavam pintados...". O erro, defende Lúcia, é raro. "É lindo como aprendem rápido." Entre as lições, está "dialogar" com o papelão. "A caixa de papelão tinha uma história, certo? Então, não temos de escondê-la."

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