São Paulo, quarta-feira, 25 de fevereiro de 2004

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MARCELO COELHO

O político, o pastor, o bicheiro e a esperança

Só entrei num bingo uma vez na vida. Eu tinha ido a Porto Alegre, não sei a propósito de que acontecimento -na mesma semana transcorria a Feira do Livro e uma série de conferências sobre o genoma humano-, e num domingo de chuva, onze e tantas da noite, estava sem ter o que fazer num desses hotéis meio antigos em que, para alívio nosso e de nossos anfitriões, acabamos sendo jogados quando termina o compromisso a que nos convidaram.
Passeei por um calçadão estreito no meio das áreas congestionadas do centro. Naquela hora, só havia as lojas fechadas, um ar desolado de domingo e a água da chuva brilhando na pedra portuguesa; nada muito diferente do centro de São Paulo, afinal -o que não melhora a depressão de ninguém.
Encontrei então uma fachada iluminada, vasta, cafajeste, feita de aço, acrílico, veludo e vidro. Os espelhos pareciam ser cor de caramelo, o tapete era cinza e azul e um grande lustre com pingentes de plástico iluminava a entrada. Uma sensação de luxo falso, de riqueza, não sei como dizer, de riqueza... barata tomava conta do lugar.
A atividade que lá se desenrolava, silenciosa e frenética, exigia muitas luzes e ao mesmo tempo uma névoa de cigarro, de anonimato e de segredo. Era um bordel sem sexo, um local onde se promove o único vício que não faz apelo aos prazeres da carne -o vício puramente intelectual e neurológico do jogo. Entrei no bingo.
Não lembro se me deram ou se comprei uma cartela. Uma voz distante anunciava os números. Nenhuma semelhança havia com os passatempos de infância: as jogatinas improvisadas com feijõezinhos na casa de praia, os sorteios intermináveis com as gordas rodelinhas de madeira que se tiravam do saco de plástico vermelho, os números que nunca saíam porque alguém tinha sumido com eles, a confusão entre o 66 e o 99, a história dos "dois patinhos na lagoa"...
Inocências paroquianas, distrações de tia velha, emoções diluídas a leite de pato, tudo, enfim, o que havia de moroso, emperrado, mecânico e incerto nos bingos da minha infância -também com o nome de tômbola ou de víspora (será o mesmo?)- tinha sido substituído por um sistema azeitado, adulto, onde garçons serviam bebida e números se sucediam com a rapidez dos impulsos eletrônicos.
Antes que eu marcasse a primeira pedra na cartela alguém já tinha completado tudo e saíra vencedor. Em menos de um minuto a brincadeira tinha acabado; eu nem mesmo chegara a experimentar alguma emoção que me levasse a tentar de novo o jogo. Ninguém dissera nada, e não havia nada a dizer. Voltei para o hotel, liguei a televisão, fiquei assistindo a um programa religioso. O pastor explicava uns versículos do Evangelho. Era, pelo menos, uma fala; ainda que vaga, fazia algum sentido, depois daquele meu breve, mudo e insípido encontro com o pecado.
Achei curioso que um deputado do PL, que também era bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, tenha-se envolvido no escândalo Waldomiro Diniz, que tantos estragos causou à imagem do PT e ao poder do ministro Zé Dirceu. Um líder petista, um pastor e um bicheiro, todos competentes e respeitáveis em suas respectivas áreas de atividade, vêem-se conjugados na mesma rede de acontecimentos, como se do velho saco de plástico vermelho da minha infância surgisse uma estranha, improvável seqüência numérica.
Talvez nem tão improvável assim. Claro, não me refiro aos fatos, às circunstâncias concretas do caso, que desconheço. Penso no que pode existir de simbólico na combinação.
Outro dia, num táxi, o motorista me fez passar um susto. Dirigia nervoso, brecou de repente, e deixou cair do console um monte de papeizinhos. Eram comprovantes da Mega Sena. O rádio ia logo dar o resultado do sorteio. O taxista quis me explicar seu método de aposta, bastante complicado; desistiu, ao perceber meu desinteresse. Disse então uma coisa importante: "Sei que é muito difícil ganhar. Mas o que não dá é viver sem esperança".
De algum modo, o motorista gastava uns vinte e tantos reais por semana em troca disso -da esperança, sempre renovada, de mudar de vida.
Vejo agora que o pastor, o bicheiro e o político do PT não deixavam de oferecer ao público essa mesma mercadoria, a esperança. O dízimo que uma igreja costuma cobrar de seus fiéis pode voltar multiplicado em prosperidade material, em saúde, em milagres, em vida eterna. É uma aposta a preço módico, e Pascal não viu nenhum escândalo em avaliar as vantagens de uma conversão ao catolicismo como se se tratasse de um jogo de roleta.
Não digo que o PT tenha alguma vez prometido o paraíso ou a cura do câncer; prometia, contudo, um país diferente, uma mudança real na sociedade. Com o casal Lula e Marisa encenou-se um conto de fadas, ao gosto dos programas de Silvio Santos; o bingo televisivo da "Roda da Fortuna", do "Show do Milhão" ou seja lá que nome tenha ganhou sua tradução oficial no noticiário de Brasília; é como se todos aqueles milhões de votos nada mais tenham formado senão montanhas de bilhetes da Mega Sena, dos quais só um foi premiado -o que coube ao casal Da Silva. Os milhões de apostadores ficaram, de qualquer modo, contentes.
Mas o pragmatismo implacável de Palocci e Zé Dirceu parece obedecer a outro roteiro, que nada tem de encantado e de ilusório. É o mundo dos "operadores" -operadores de mercado, operadores políticos-, de onde justamente a esperança foi banida: só a realidade conta. Discursos, expectativas, bandeiras, funcionam como luzes coloridas na fachada de um cassino qualquer. Não têm valor para quem passou a pertencer ao mundo dos espertos.
Além de espertos, eles também se tornam desencantados. Isso os entristece, mas o poder sempre compensa. Não é como no bingo de Porto Alegre. Há tapetes persas de verdade, os lustres não têm pingentes de plástico, e as portas são de madeira de lei... É o mundo real, sem dúvida.


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