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CONTARDO CALLIGARIS
Admiráveis mulheres
Na Folha de domingo passado, uma reportagem de Gilmar Penteado, "Dobra o número
de meninas na Febem". O texto
apontava que, nos últimos três
anos, dobrou o número de meninas cumprindo "medidas socioeducativas" na Febem, enquanto o
número de garotos aumentou
apenas 49,3%. Além disso, com
esse entusiasmo inédito, as meninas se encaminham para os mesmos crimes que são preferidos pelos garotos (roubo qualificado e
tráfico de drogas).
Você pensava o quê? As mulheres deixaram de se preocupar só
com as panelas e o repouso sexual
do guerreiro. Participam da dita
"vida ativa" (ou seja, da produção) tanto quanto o homem. Portanto, acabou a época em que as
mulheres cometiam lânguidos
crimes por paixão ou eram cúmplices fiéis de seus companheiros
ladrões. Chegou a época da igualdade: as meninas assaltam como
garotos.
Nostalgia das mulheres que se
dedicavam só ao lar e à tarefa de
seduzir? Seria estranho, pois os
homens de hoje não gostam especialmente de amélias. Então nostalgia de quê?
Os homens ingressaram na modernidade se transformando em
puros agentes econômicos: a profissão nos define, os bens acumulados e a renda nos qualificam socialmente, o lucro nos motiva, e o
consumo expressa nossos desejos.
É simples, mas custoso, pois essa
transformação pede, em princípio, que os homens descuidem de
seus vínculos afetivos e passionais. Nada de lar, pátrias e amores: somente o mercado. Idealmente, o produtor-consumidor,
sedento de bens e status, é órfão,
apátrida e desdenhoso de sentimentos complexos.
No começo, as mulheres foram
poupadas pela modernidade. Sobrou-lhes a tarefa de cuidar dos
homens e de reproduzi-los. Com
isso, elas se tornaram, para todos
(inclusive para elas mesmas), o
símbolo do que os homens perdiam, do lar, da terra, da sensualidade do corpo, dos transportes
da paixão, enfim, da vida concreta. Nos últimos 50 anos, as coisas
mudaram. Será que as mulheres
de hoje, como as meninas da Febem, se parecem com os garotos?
Começou, na semana passada
(e permanece até 30 de maio), no
Itaú Cultural (avenida Paulista,
149), a exposição "O Preço da Sedução, do Espartilho ao Silicone".
Sem pedantismo, com quadros,
roupas, acessórios, revistas da
época (que podem efetivamente
ser folheadas) e trechos de filmes,
a curadora, Denise Mattar, esboçou uma bonita história da sedução feminina nos últimos 200
anos.
Em reverência obrigatória ao
senso comum, é difícil não criticar
a servidão das mulheres, "forçadas" a modelar seus corpos segundo o desejo masculino. Mas, percorrendo as salas da exposição,
pensei algo um pouco diferente.
É extraordinário que, desde os
anos 50, as mulheres consigam
produzir como os homens sem
abandonar a arte da sedução e
(embora esse não seja o tema da
exposição) sem deixar de ser
mães: elas continuam sendo
guardiãs do lar, representantes
da paixão e símbolos da sensualidade dos corpos.
É uma missão impossível a cada
dia: leve as crianças para a escola,
corra para o trabalho, ao meio-dia depilação e almoço executivo,
volte para o escritório, encontre a
orientadora do colégio do filho,
aproveite aquela liquidação de
lingerie, escreva o relatório para a
conferência anual e esteja em casa a tempo para tomar banho, secar o cabelo e acolher os convidados para o jantar. No meio disso,
faça o necessário para que fechem
as contas do mês. Admiráveis
mulheres.
Logicamente, para a mulher
que se tornou agente econômico
(e que assalta como um garoto),
as antigas exigências da sedução,
da paixão e do lar soam como
uma imposição violenta. "Além
de trabalhar, olhe o que me toca
fazer enquanto meu suposto companheiro volta do serviço como
um viking voltava da guerra. Alega suas feridas para descuidar de
si, dos filhos, da casa e de mim. E
ainda pede que Salomé dance para ele, com ou sem os sete véus."
É grande a tentação de entender a história dos artifícios da sedução como uma história das
alienações impostas às mulheres
pelas fantasias dos homens. Os
homens do século passado deviam gostar de cintura fina, e as
mulheres se deixavam sufocar
nos espartilhos. Muitos homens
hoje devem gostar de peitos fartos, e as mulheres passam na faca.
Será que é isso?
Talvez. Mas pensar assim não é
diminuir o mérito das mulheres?
Afinal, foram elas que, no mundo
abstrato dos agentes econômicos,
souberam e ainda sabem inventar mil maneiras de manter vivo
o desejo concreto.
A história da sedução não é só
uma história de violências sofridas e de sujeição às fantasias dos
homens. É também a história de
como, nas margens das fábricas e
dos escritórios, as mulheres conseguiram resguardar um tempo e
um lugar para as paixões ou para
as vontades marotas.
O preço da sedução, do espartilho ao silicone, não é só o preço
pago pelas mulheres submissas ao
desejo masculino. É também o
custo de um projeto, o preço que
elas pagam por querer que a vida
seja diferente, menos pobre e menos aborrecida.
Certo, parece um despropósito:
a arte da sedução como meio para mudar o mundo? Mas veja só.
Várias propagandas antigas são
reproduzidas na exposição. Por
que usar a Lugolina do dr. Eduardo França? Pois é, declara a modelo, "estou convencida de que,
para ser bela e dominar o mundo,
deve-se usar só Lugolina".
ccalligari@uol.com.br
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