São Paulo, quarta-feira, 25 de março de 2009

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MÚSICA

Crítica/"Schubert: The Wanderer - Lieder & Fragments"

Ótimo CD supera a convenção e ressalta a estranheza das canções de Schubert

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

A grande surpresa vem na última faixa. Depois de nada menos do que 30 canções, divididas em dois discos, surge esse "Adeus à Terra", um poema recitado, com acompanhamento de piano. Foi composto por Franz Schubert (1797-1828) para uma peça teatral de um autor pouco conhecido, Adolf von Pratobevera.
Tecnicamente nem é uma canção (um "lied"), e sim um "melodrama": versos falados. Mas aqui a canção como que chega a seu grau zero, a palavra com música por dentro, a língua virando música. Tanto mais nessa interpretação do tenor Ian Bostridge, acompanhado por Leif Ove Andsnes. O inglês e o norueguês já haviam gravado juntos o ciclo "Winterreise", de Schubert. E um CD de Andsnes tocando a "Sonata em Lá Maior", gravado em 2002, incluía, como bônus, quatro canções com Ian Bostridge, recolhidas novamente aqui. A parceria não poderia ser mais justa. Um e outro são artistas "de projeto", para quem a música existe no mundo e deve guardar consciência disso. Cada disco, cada concerto deles parece pensado como um livro, ou como um ensaio de crítica, naquele registro em que crítica e poesia viram uma coisa só.
Um e outro têm interesse também na música do nosso tempo. Andsnes, por sinal, lança neste mês um novo disco, "Shadows of Silence" (sombras do silêncio), dedicado exclusivamente a compositores contemporâneos: Sorensen, Dalbavie, Kurtág e Lutoslawski. Neste ano, estreia também um projeto em colaboração com o artista plástico sul-africano Robin Rhode, recriando em nova chave os "Quadros de uma Exposição", de Mussorgski (que ele tocou na Sala São Paulo, em setembro do ano passado).
Isso faz diferença, para quem toca Schubert? A resposta óbvia é "sim", não apenas pelo que representa de abertura espiritual, mas ainda mais concretamente pela diferença sonora que um repertório pode inspirar no outro. Sem o conforto da convenção, a estranheza das canções de Schubert só tem a ganhar -e muitas delas soam mesmo profundamente estranhas, aberratórias, exceções ao gênero do qual são supostamente o modelo. Exemplos abundam num disco rico de surpresas. Não apenas pelas raridades, como o melodrama de Pratobevera, ou a peça de abertura, "Viola", quase uma cena operística (com versos de Franz von Schober), 13 minutos de música, em variados estágios de atribulação.
Mesmo um clássico conhecidíssimo, como "A Morte e a Donzela", ganha contornos novos. O caráter teatral do embate entre a moça e a morte -um tema urgente na Viena oitocentista, onde moças e moços morriam cedo- vem dramatizado no contraste de timbres da voz: dos agudos claríssimos da primeira parte para as profundezas de um ré grave que ninguém adivinharia na garganta de um tenor.

Caminhante solitário
O nome do disco vem de "Der Wanderer" (de 1819), com versos de F. Schlegel, uma de tantas canções centradas na figura do "caminhante" visionário e solitário, comum na poesia de início do século 19. Aqui se escuta, mais uma vez, a arte do "lied" elevada à simplicidade suprema: uma voz, dizendo palavras, no limite impreciso entre a linguagem falada e a música cantada, e um piano, que acolhe e transforma o que se diz em tons para além do que se diz. São só duas estrofes e a canção se esvai, o caminhan- te se afasta. Fica um branco. Fica um espaço. Ou melhor, fica um vazio. Ficamos nós, com Schubert, ouvindo um piano e uma voz.


SCHUBERT: THE WANDERER - LIEDER & FRAGMENTS (CD DUPLO)

Artistas: Ian Bostridge e Leif Ove Andsnes
Gravadora: EMI
Quanto: R$ 77,30 (importado)
Avaliação: ótimo



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