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MÚSICA
Crítica/"Schubert: The Wanderer - Lieder & Fragments"
Ótimo CD supera a convenção e ressalta a estranheza das canções de Schubert
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
A grande surpresa vem na
última faixa. Depois de
nada menos do que 30
canções, divididas em dois discos, surge esse "Adeus à Terra",
um poema recitado, com acompanhamento de piano. Foi
composto por Franz Schubert
(1797-1828) para uma peça teatral de um autor pouco conhecido, Adolf von Pratobevera.
Tecnicamente nem é uma canção (um "lied"), e sim um "melodrama": versos falados. Mas
aqui a canção como que chega a
seu grau zero, a palavra com
música por dentro, a língua virando música. Tanto mais nessa interpretação do tenor Ian
Bostridge, acompanhado por
Leif Ove Andsnes.
O inglês e o norueguês já haviam gravado juntos o ciclo
"Winterreise", de Schubert. E
um CD de Andsnes tocando a
"Sonata em Lá Maior", gravado
em 2002, incluía, como bônus,
quatro canções com Ian Bostridge, recolhidas novamente
aqui. A parceria não poderia ser
mais justa. Um e outro são artistas "de projeto", para quem a
música existe no mundo e deve
guardar consciência disso. Cada disco, cada concerto deles
parece pensado como um livro,
ou como um ensaio de crítica,
naquele registro em que crítica
e poesia viram uma coisa só.
Um e outro têm interesse
também na música do nosso
tempo. Andsnes, por sinal, lança neste mês um novo disco,
"Shadows of Silence" (sombras
do silêncio), dedicado exclusivamente a compositores contemporâneos: Sorensen, Dalbavie, Kurtág e Lutoslawski.
Neste ano, estreia também um
projeto em colaboração com o
artista plástico sul-africano Robin Rhode, recriando em nova
chave os "Quadros de uma Exposição", de Mussorgski (que
ele tocou na Sala São Paulo, em
setembro do ano passado).
Isso faz diferença, para quem
toca Schubert? A resposta óbvia é "sim", não apenas pelo que
representa de abertura espiritual, mas ainda mais concretamente pela diferença sonora
que um repertório pode inspirar no outro. Sem o conforto da
convenção, a estranheza das
canções de Schubert só tem a
ganhar -e muitas delas soam
mesmo profundamente estranhas, aberratórias, exceções ao
gênero do qual são supostamente o modelo.
Exemplos abundam num
disco rico de surpresas. Não
apenas pelas raridades, como o
melodrama de Pratobevera, ou
a peça de abertura, "Viola",
quase uma cena operística
(com versos de Franz von
Schober), 13 minutos de música, em variados estágios de atribulação.
Mesmo um clássico
conhecidíssimo, como "A Morte e a Donzela", ganha contornos novos. O caráter teatral do
embate entre a moça e a morte
-um tema urgente na Viena oitocentista, onde moças e moços
morriam cedo- vem dramatizado no contraste de timbres
da voz: dos agudos claríssimos
da primeira parte para as profundezas de um ré grave que
ninguém adivinharia na garganta de um tenor.
Caminhante solitário
O nome do disco vem de "Der
Wanderer" (de 1819), com versos de F. Schlegel, uma de tantas canções centradas na figura
do "caminhante" visionário e
solitário, comum na poesia de
início do século 19. Aqui se escuta, mais uma vez, a arte do
"lied" elevada à simplicidade
suprema: uma voz, dizendo palavras, no limite impreciso entre a linguagem falada e a música cantada, e um piano, que
acolhe e transforma o que se
diz em tons para além do que
se diz. São só duas estrofes e
a canção se esvai, o caminhan-
te se afasta. Fica um branco. Fica um espaço. Ou melhor, fica
um vazio. Ficamos nós, com
Schubert, ouvindo um piano e
uma voz.
SCHUBERT: THE WANDERER -
LIEDER & FRAGMENTS (CD
DUPLO)
Artistas: Ian Bostridge e Leif Ove
Andsnes
Gravadora: EMI
Quanto: R$ 77,30 (importado)
Avaliação: ótimo
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