São Paulo, quarta, 25 de março de 1998

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SALÃO DO LIVRO
Sarney e Saulo Ramos falam de literatura

Marlene Bergamo/Folha Imagem
O advogado Saulo Ramos e o ex-presidente José Sarney em Paris


LUIZ ANTÔNIO RYFF
enviado especial a Paris

O ex-presidente José Sarney espera sua mulher se afastar para confessar seu adultério. "Casei com a política e a literatura é minha amante", diz ele, que está em Paris cometendo traição amorosa como convidado do 18º Salão do Livro.
A Folha reuniu o ex-presidente e seu ministro da Justiça, o advogado Saulo Ramos, para conversar sobre literatura. Eles tiveram obras lançadas recentemente na França e, além de participarem do Salão do Livro, estarão juntos amanhã na Casa Internacional de Poetas e Escritores, em Saint-Malo.
"Capitaine de la Mer Océane" ("O Dono do Mar"), de Sarney, foi elogiado por Lévi-Strauss, pela crítica literária francesa e está chegando à segunda edição. Sarney agora escreve um romance ambientado no antigo contestado entre França e Brasil, no Amapá.
Ramos está lançando o livro "C'Était Aujourd'hui", com o aval do crítico literário francês Claude Couffon e prefácio de Jô Soares e Jorge Amado. "Sou praticamente inédito, estou começando agora", diz ele, que usa seus poemas para expressar "experiências de vida de quase 40 anos que estão me incomodando".
O livro reúne 21 poemas selecionados entre 400 que passaram anos aguardando a hora de sair da gaveta. "É como o vinho, se não azedar tudo bem."
O quase inédito fica por conta de um livro que Ramos havia publicado no final da adolescência, "Quando escrevo poesia, me recuso a ter mais de 20 anos."
Sentados no bar do hotel Prince de Gales, com som de bossa nova ao fundo, Sarney e Ramos conversaram sobre literatura, Deus e -como a promessa de não tocar no assunto foi quebrada- um pouco de política. Para Sarney, no Brasil, 'à cultura está em uma fase pré-capitalista."

Folha - Na atividade literária, o escritor cria um mundo no qual é seu próprio Deus com poder absoluto sobre seus personagens. A literatura não é um pouco frustrante já que na política também existe um pouco desse mesmo poder sobre as pessoas? Enquanto um poder é real, outro é fictício.
Sarney - A vida tem duas vertentes, a da política e da literatura. A política foi o destino, a literatura é a vocação. Escrever é uma compulsão. Tem uma certa relação com a arte de Deus por causa da arte da criação. Deus quando criou o mundo ele criou com leis físicas. E o escritor viola todas essas leis para criar um mundo imaginário, que é eterno e não se modifica. É muito difícil ser político e ser escritor. O político lida com realidades, o escritor lida com abstrações.
Folha - O escritor viola leis de Deus criando outras. Isso não os aproxima?
Ramos - Isso me lembra um cantador nordestino que dizia "sou maior do que Deus, porque Deus nunca pecou e eu sou um grande pecador".
Sarney - Deus pode fazer leis. Nós não podemos.
Folha - O sr. não acha que um "político-escritor" pode fazer leis duas vezes?
Ramos - O direito é sempre uma expressão de momento da civilização. A literatura tem um pouco mais de pretensão à eternidade.
Vivi na advocacia a dor humana, as misérias todas. É impossível ficar indiferente. Em algum momento ela volta em forma de criação. Como disse o presidente, a necessidade de escrever é quase fisiológica. Escrevendo um recurso extraordinário, de repente, as palavras começam a vir ritmadas, metrificadas. O Sarney, aliás, tem uma teoria sobre a poesia que acho fantástica.
Sarney - Você é jornalista. Você usa a palavra para expressar a realidade. O escritor deseja usar e transubstanciar as palavras, que passam a não significar aquelas coisas que, nas verdade, elas significam.
Para um escritor, uma rosa não é uma rosa. Ela tem um significado muito mais transcendental. Uma rosa e uma rosa escrita são diferentes. Essa angústia das palavras que faz parte da arte de escrever.
Folha - O que causa mais angústia, política, advocacia, literatura?
Ramos - De política eu não entendo. O direito é angustiante porque sempre há um ser humano por trás. Você está defendendo a liberdade ou o patrimônio de alguém. E você depende de uma lei, que nem sempre é bem feita.
Folha - Presidente, o sr. disse que casou com a política e comete adultério com a literatura...
Sarney - Todos os dias. Sempre digo que a política me levou, mas que queria ser levado pela literatura. Minha convivência com o poder sempre foi uma convivência de angústias. Nunca estabelecemos relações maiores de intimidade.
Mas não há nenhuma relação entre o que escrevi e a política. Se fosse misturar as coisas, a política destruiria a literatura. Embora reconheça que a política tem muito de ficção. Veja o episódio da morte do Tancredo (Neves). Que escritor poderia escrever aquilo?
Folha - O público não separa o político do escritor.
Sarney - É a dificuldade que tem o 'político-escritor'. Pensam que é um pouco de charme da parte política se utilizando da literatura.
Folha - Os srs. acreditam que a crítica vê o escritor-homem público de modo diferente?
Ramos - Sempre temi mais meus clientes do que críticos. Achei que eles pensariam que o advogado sendo poeta, iria perder, no mínimo, o prazo. Publiquei poesia em uma coletânea com vários juristas. Concordamos que dessa forma, se houvesse uma fuga de clientes, seria entre nós (ri).
Sarney - É muito fácil diferenciar a crítica preconceituosa. Eles não leram e já não gostaram. Eu não me posso me queixar. Com a carreira política que tenho, escrever ficção é um risco extraordinário.
Quando lancei "Norte da Águas" há 30 anos, ele teve uma repercussão extraordinária no Brasil. Foi traduzido em 11 línguas. No exterior, podemos sentir, com uma certa isenção, o que se está fazendo. Eu me liberto do político. Isso me dá uma felicidade grande.
Folha - O sr. se acha melhor compreendido como escritor ou como político?
Sarney - O criador foi muito generoso comigo. Ele me trouxe lá do Maranhão, de uma casinha de 50 metros quadrados onde eu nasci, no interior, me fez presidente, me colocou para escrever livros.
Folha - Alguns escritores brasileiros acham que o salão foi a maior vitrine para a literatura brasileira.
Sarney - A presença da literatura brasileira aqui tem sido muito modesta. Algumas pessoas atribuem isso a dificuldade de tradução. O escritor brasileiro é muito mais livre, o que torna mais difícil a transposição para outra língua. Esse salão foi uma oportunidade extraordinária. Principalmente em um momento em que a literatura não passa por um dos períodos mais brilhantes. \Nós entramos em um processo de globalização



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