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MARCELO COELHO
Sem saudades do Merthiolate
Não só o Merthiolate. Também foi banido o biotônico
Fontoura -cuja fórmula, contendo álcool, terá de ser alterada.
Tem razão o leitor Marcílio Godoi, que, em carta à Folha, expressou temores quanto à sobrevivência da pomada Minâncora,
do Regulador Xavier e do óleo de
fígado de bacalhau.
Não tenho saudade desses produtos. De todos, aliás, só o Merthiolate consumi. Contra a vontade, claro. Mas ele tinha o seu
charme. Era evidente sua superioridade com relação ao banal
mercurocromo. Pois era pior e,
sendo pior, só podia ser melhor.
Como se sabe, este é o mais importante, talvez o único, axioma
da medicina.
O vermelho do mercurocromo
era um vermelho infantil, substantivo, indubitável. O do Merthiolate nem bem vermelho era:
tinha algo de fosforescente e de cítrico, de enganoso, de psicodélico.
O mercurocromo padecia de
outra desvantagem em relação ao
pérfido rival: não tinha aplicador.
Se bem me lembro, para usá-lo,
era necessário um chumaço de algodão, objeto transicional entre o
frasco e a ferida. O Merthiolate
era bem mais tecnológico e menos
maternal, com sua retícula de
plástico na ponta de uma haste
acoplada à própria tampa. Impessoalidade, frieza, precisão: o
Merthiolate, claramente, era
mais científico.
Um progresso, não há dúvida.
Passar do mercurocromo ao Merthiolate era passar do "dodói" ao
"machucado", do primário ao ginásio, em termos de escoriações e
acidentes.
Algo como passar da calça rancheira para a Levi's, do suco de
uva para a Coca-Cola, do Gordini
para o Corcel, da Gemini para a
Apolo 11, de Wanderléa para Rita
Lee, de Delfim Netto para Simonsen, de Johnson para Nixon. Ou
seja, do ruim para o pior, que, dependendo do ponto de vista, não
deixa de ser o ruim melhorado.
Surge agora o ministro dizendo
que o bom mesmo é passar água e
sabão. Mas como? Mais uma vez,
vem à mente a frase clássica: então nos enganaram durante todos esses anos?
Sim, meu velho. Você já deve estar bem contaminado de mercúrio e não sabia disso. Faz um mal
dos diabos. Ah, e espere mais um
pouco, porque não concluímos
ainda nossa pesquisa sobre a
água e o sabão. Que água? Que
sabão exatamente? Pode me dizer?
A questão, em todo caso, não é
bem de nostalgia, mas de engodo.
Acabando com o Merthiolate, suprimiram alguma coisa que não
nos fazia falta nenhuma. Não nos
queixamos de seu desaparecimento, mas ficamos atônitos
diante de sua nulidade retrospectiva. Não fomos roubados: passaram-nos um cheque sem fundos
que, de qualquer modo, tínhamos
nos esquecido de descontar.
Não é que algo se tenha perdido, mas, sim, que algo foi escondido. Não há o que lamentar. Creio
que, nessa saudade falsa do Merthiolate, estamos pressentindo
outra coisa: a idéia passou por
mim como um sopro gelado.
Trata-se do fato de que todos
nós já pertencemos ao século passado. Isso é que é o mais estranho.
O ano 2000, quando veio, foi motivo de comemorações um pouco
infantis, foi uma espécie de brinquedo novo. Nos últimos meses,
contudo, vão ficando mais frequentes as menções ao século 20
como "o século passado". Ainda
tenho de fazer uma operação
mental para me acostumar com
isso.
Para mim, o "século passado"
ainda é aquele de Dickens, de
Darwin, dos costumes vitorianos,
de Marx e da Comuna de Paris,
de José de Alencar e da princesa
Isabel. Eis que, em questão de alguns meses, todas essas imagens
são colocadas no nicho remoto
em que jaziam as cinzas de Voltaire, de Rousseau, de Gluck e de
Mozart, com sua peruca e seus
minuetos.
Vou percebendo que o "século
passado" é o século de Debussy e
Ravel, de Orson Welles e Chaplin,
de Mao e Ho Chi Minh, de John
Lennon e Andy Warhol. A pergunta parece-me lógica e absurda
ao mesmo tempo: por que eu haveria de sentir saudades dessa
gente?
Aos meus olhos, essas figuras
não pertencem ao "passado"; não
as perdi, são minhas contemporâneas. O presente é que já é outro.
Não me tiraram nada: eu é que
vou ficando de fora.
Sabe-se que os amputados continuam a sentir dores na perna
que já não têm. Claro que não se
trata de "saudade" da perna cortada. É apenas a sensação de que
algo desaparecido continua a
existir. Assim nos relacionamos
com o passado. Muita coisa ainda
sangra e dói sem que tenhamos
notado que a ferida já cicatrizou.
Será? É só um modo de ver. Só sei
que passar Merthiolate não
adianta nada.
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