São Paulo, quarta-feira, 25 de abril de 2001

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MARCELO COELHO

Sem saudades do Merthiolate

Não só o Merthiolate. Também foi banido o biotônico Fontoura -cuja fórmula, contendo álcool, terá de ser alterada. Tem razão o leitor Marcílio Godoi, que, em carta à Folha, expressou temores quanto à sobrevivência da pomada Minâncora, do Regulador Xavier e do óleo de fígado de bacalhau.
Não tenho saudade desses produtos. De todos, aliás, só o Merthiolate consumi. Contra a vontade, claro. Mas ele tinha o seu charme. Era evidente sua superioridade com relação ao banal mercurocromo. Pois era pior e, sendo pior, só podia ser melhor. Como se sabe, este é o mais importante, talvez o único, axioma da medicina.
O vermelho do mercurocromo era um vermelho infantil, substantivo, indubitável. O do Merthiolate nem bem vermelho era: tinha algo de fosforescente e de cítrico, de enganoso, de psicodélico.
O mercurocromo padecia de outra desvantagem em relação ao pérfido rival: não tinha aplicador. Se bem me lembro, para usá-lo, era necessário um chumaço de algodão, objeto transicional entre o frasco e a ferida. O Merthiolate era bem mais tecnológico e menos maternal, com sua retícula de plástico na ponta de uma haste acoplada à própria tampa. Impessoalidade, frieza, precisão: o Merthiolate, claramente, era mais científico.
Um progresso, não há dúvida. Passar do mercurocromo ao Merthiolate era passar do "dodói" ao "machucado", do primário ao ginásio, em termos de escoriações e acidentes.
Algo como passar da calça rancheira para a Levi's, do suco de uva para a Coca-Cola, do Gordini para o Corcel, da Gemini para a Apolo 11, de Wanderléa para Rita Lee, de Delfim Netto para Simonsen, de Johnson para Nixon. Ou seja, do ruim para o pior, que, dependendo do ponto de vista, não deixa de ser o ruim melhorado.
Surge agora o ministro dizendo que o bom mesmo é passar água e sabão. Mas como? Mais uma vez, vem à mente a frase clássica: então nos enganaram durante todos esses anos?
Sim, meu velho. Você já deve estar bem contaminado de mercúrio e não sabia disso. Faz um mal dos diabos. Ah, e espere mais um pouco, porque não concluímos ainda nossa pesquisa sobre a água e o sabão. Que água? Que sabão exatamente? Pode me dizer?
A questão, em todo caso, não é bem de nostalgia, mas de engodo. Acabando com o Merthiolate, suprimiram alguma coisa que não nos fazia falta nenhuma. Não nos queixamos de seu desaparecimento, mas ficamos atônitos diante de sua nulidade retrospectiva. Não fomos roubados: passaram-nos um cheque sem fundos que, de qualquer modo, tínhamos nos esquecido de descontar.
Não é que algo se tenha perdido, mas, sim, que algo foi escondido. Não há o que lamentar. Creio que, nessa saudade falsa do Merthiolate, estamos pressentindo outra coisa: a idéia passou por mim como um sopro gelado.
Trata-se do fato de que todos nós já pertencemos ao século passado. Isso é que é o mais estranho. O ano 2000, quando veio, foi motivo de comemorações um pouco infantis, foi uma espécie de brinquedo novo. Nos últimos meses, contudo, vão ficando mais frequentes as menções ao século 20 como "o século passado". Ainda tenho de fazer uma operação mental para me acostumar com isso.
Para mim, o "século passado" ainda é aquele de Dickens, de Darwin, dos costumes vitorianos, de Marx e da Comuna de Paris, de José de Alencar e da princesa Isabel. Eis que, em questão de alguns meses, todas essas imagens são colocadas no nicho remoto em que jaziam as cinzas de Voltaire, de Rousseau, de Gluck e de Mozart, com sua peruca e seus minuetos.
Vou percebendo que o "século passado" é o século de Debussy e Ravel, de Orson Welles e Chaplin, de Mao e Ho Chi Minh, de John Lennon e Andy Warhol. A pergunta parece-me lógica e absurda ao mesmo tempo: por que eu haveria de sentir saudades dessa gente?
Aos meus olhos, essas figuras não pertencem ao "passado"; não as perdi, são minhas contemporâneas. O presente é que já é outro. Não me tiraram nada: eu é que vou ficando de fora.
Sabe-se que os amputados continuam a sentir dores na perna que já não têm. Claro que não se trata de "saudade" da perna cortada. É apenas a sensação de que algo desaparecido continua a existir. Assim nos relacionamos com o passado. Muita coisa ainda sangra e dói sem que tenhamos notado que a ferida já cicatrizou. Será? É só um modo de ver. Só sei que passar Merthiolate não adianta nada.


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