São Paulo, sábado, 25 de maio de 2002 |
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Livro registra a trilogia do grupo que recriou palcos para seu teatro novo e apocalíptico O evangelho da vertigem
VALMIR SANTOS DA REPORTAGEM LOCAL "Aqui está apenas a poeira cósmica do universo que somos." Na prisão, a filosofia de parede tem lá seu insight quando em letras arranhadas num corredor de cheiro cinza e cores mofadas. Os atores do Teatro da Vertigem parecem transitar por essas memórias do cárcere com desprendimento. O grupo conquistou guarida em quase quatro anos de "Apocalipse 1,11", somados criação e temporadas do espetáculo em prisões desativadas do país e do exterior. No 35º Festival Internacional de Londrina, que termina hoje, o Vertigem expõe mais uma vez a rede de segurança cumulativa das passagens por igrejas e hospitais nas duas montagens anteriores. Lá se vão outros seis anos. Essa trajetória está delineada em "Trilogia Bíblica", que a editora Publifolha lança em São Paulo no dia 10 de junho. Sob assinatura do grupo, o livro descortina as três produções da sua primeira década. Reúne os textos e farto material fotográfico de "O Paraíso Perdido" (1992), com dramaturgia de Sérgio de Carvalho; "O Livro de Jó" (1995), de Luís Alberto de Abreu; e "Apocalipse 1,11" (1999), de Fernando Bonassi. As peças foram concebidas por meio de processos colaborativos em que atores, dramaturgos e encenador subsidiaram uns aos outros -uma das marcas da equipe dirigida por Antônio Araújo. Há depoimentos dos três dramaturgos e dos demais criadores que atravessaram a década com o Vertigem: a luz por Guilherme Bonfanti, a cenografia por Marcos Pedroso, a música por Laércio Resende, os figurinos por Fábio Namatame e a produção por Marcos Moraes. O artigo dos atores é costurado por Miriam Rinaldi, cicerone da metodologia de trabalho a partir de "Apocalipse 1,11". Araújo dá seu testemunho no capítulo "E a Carne se Fez Verbo". "Trilogia Bíblica" abre espaço para a reflexão com textos do dramaturgo Aimar Labaki e das pesquisadoras Silvana Garcia e Silvia Fernandes, ambas professoras da Universidade de São Paulo. A obra abarca ainda o modo como se deu a recepção crítica dos espetáculos nos jornais. Segundo Rinaldi, o livro vem documentar a pesquisa em torno de textos bíblicos e obras de autores clássicos, pesquisa que evoluiu para um ponto de vista crítico dos contextos social, político e cultural do Brasil real. Por onde passa, o Teatro da Vertigem reinventa o seu lugar. A opção pelo espaço não convencional (uma igreja em "O Paraíso Perdido", um hospital em "O Livro de Jó" e um presídio em "Apocalipse 1,11") predispõe o grupo a situações-limite. "Já estão cogitando de a gente fazer o quarto espetáculo em um cemitério", brinca o ator Vanderlei Bernardino, um dos fundadores do grupo. No último final de semana, em Londrina, a chuva foi contratempo. Vencidas etapas como conquista do local para a apresentação, uma cadeia pública construída há 61 anos, o grupo teve de adiar ou interromper apresentações por causa da chuva. Antes da estréia, por exemplo, foi ao chão o teto sob o qual se passa as cenas da boate New Jerusalém (nada de novo se comparado às provações da primeira temporada paulistana no presídio desativado do Hipódromo). Providenciou-se uma eficiente cobertura de plástico. Mas o maior entrave se deu na cena do julgamento final, aquela em que o Juiz comete suicídio ("Quem vai me salvar de mim?"), pela primeira vez realizada a céu aberto, no quintal do cadeião. Naqueles dias em Londrina, a roda de mãos dadas que antecede cada sessão e envolve os 24 integrantes da equipe, como a pedir licença para as "energias" de cada presídio, invocou também os préstimos de são Pedro. Intérprete de João, o personagem que perambula em busca da sua cidade santa em "Apocalipse 1,11", Bernardino incumbe-se dos cuidados espirituais com os quais o grupo aprendeu a lidar durante "O Livro de Jó", que terminava em uma sala de UTI. Além da concentração coletiva, cada um desenvolve sua maneira de lidar com o cruzamento do sagrado e do profano. É preciso trabalhar alguns "apocalipses pessoais". TRILOGIA BÍBLICA. Editora: Publifolha. Vários autores. Quanto: R$ 49 (346 págs.). Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Grupo lida com risco e arte do precário Índice |
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