São Paulo, terça-feira, 25 de maio de 2004

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BERNARDO CARVALHO

A construção da realidade

Para quem ainda não tinha notado, esta coluna nunca foi um modelo de atualidade jornalística. Se não fosse quinzenal, certamente teria discorrido sobre "Pântano" ("La Ciénaga"), da argentina Lucrecia Martel, mais cedo, na semana passada, e ainda assim já com algum atraso em relação à cobertura da mídia local. Para a minha infelicidade, só fui assistir ao filme depois de já ter escrito o texto da coluna anterior.
Se ao menos o segundo longa da cineasta, "La Niña Santa", que concorria à Palma de Ouro em Cannes, tivesse levado algum prêmio no sábado, eu ainda teria a meu favor um "gancho" jornalístico para justificar o interesse atrasado por "Pântano".
Mas o que é o meu atraso circunstancial (pelo qual me mortifico) comparado com o fato de um filme genial como esse, feito ali ao lado, premiado em Berlim, em 2001, só ter entrado em cartaz em São Paulo há três semanas, mais de três anos depois da estréia mundial, e em uma única sala?
Num catálogo de entrevistas sobre o cinema argentino independente editado no ano passado pelo Malba, Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires, a cineasta diz que o filme "não está estruturado em função de uma trama de ordem clássica", mas de texturas, de sons e de toda uma série de relações sensoriais que fazem do próprio relato um elemento físico carregado de uma sexualidade misteriosa e de um sentimento de terror que nunca se explicita.
Os personagens são essencialmente físicos, o que torna primordial não só o processo de seleção dos atores, mas, em seguida, a criação de intimidade entre eles. "Tinha medo de que isso não acontecesse. (...) Sobretudo, porque há pessoas superconhecidas e crianças totalmente desconhecidas. Então, fizemos várias reuniões num quarto de hotel de Buenos Aires, com todos numa cama de casal. (...) O pessoal do hotel deve ter achado que estávamos fazendo um filme pornô", diz Martel.
A produção levou cinco anos. Durante o primeiro ano, sem dinheiro, a cineasta tentou montar o elenco, em vão, procurando atores não-profissionais entre os moradores da cidade de Salta, no extremo norte da Argentina, onde ela nasceu e em cuja Província é ambientado o filme. "Em Salta, ninguém tem a ambição de ser ator de cinema. Então, vinham por tédio, por curiosidade."
Entre os que apareceram, havia um homem que insistia em fazer da mulher uma atriz e, depois de descobrir que a cineasta estreante ainda não tinha um tostão, se ofereceu, sem que a mulher soubesse, para uma colaboração inusitada: se propunha a construir um forno crematório. Os mortos pagariam o filme. Fazendo as contas, Martel concluiu que "teria que matar e cremar mais ou menos a metade de Salta".
A anedota do casal dá uma vaga idéia dos personagens de "Pântano", duas famílias decadentes e seus filhos, entre a cidade de Salta e um sítio caindo aos pedaços e aparentemente abandonado se não fosse pela presença ociosa dos proprietários em férias. Entre os morros e a mata, debaixo de um calor opressivo e de um céu carregado de nuvens e trovoadas de uma tempestade que nunca desata, eles são corpos que seguem trôpegos e estropiados, cada um para o seu lado, descuidados consigo mesmos, como animais com uma sensualidade à flor da pele, diante da constante ameaça de um desastre iminente (como a tempestade) e da morte.
Passam as tardes jogados pelos quartos, em seduções incestuosas, ou tropeçando em copos de vinho e aperitivos à volta de uma piscina imunda, cujo fundo é tão insondável quanto a mata dos morros ao redor do sítio, por onde os meninos andam armados, brincando de caçadores com espingardas de verdade, tão selvagens, sujos, cortados e estropiados quanto os adultos chocando-se uns contra os outros dentro de casa.
O que deu origem ao filme foi justamente uma anedota contada à cineasta por uma amiga, sobre um acidente à beira de uma piscina. Os cortes e pequenos acidentes marcam a tensão e a consciência desse estado de suspensão, entre fragilidade e violência.
Entre os meninos armados, atirando a esmo, há um caolho, provável vítima dessas brincadeiras armadas, que será submetido em breve a uma operação reparadora, para pôr um olho de vidro. A expressão no rosto dos meninos deixa no ar a suspeita de que os acidentes talvez não sejam tão acidentais.
Como disse numa entrevista recente a Silvana Arantes, na Folha, Lucrecia Martel entende a realidade como uma construção. Todas as ações e todos os pensamentos (e portanto todo o filme) contribuem para a construção da realidade. E embora uma parte da crítica tenha visto em "Pântano" uma metáfora da derrocada argentina, está claro que essa estranha representação, ao mesmo naturalista e simbólica, essa estranha construção da realidade, prefere não chegar a nenhum acordo com o espectador, mantê-lo num estado de suspensão análogo àquele em que vivem os personagens.
Estão todos entregues, subjugados ao clima e ao entorno, condenados a esse momento de suspensão em que o corpo ainda sobrevive aos acidentes, embora seja constantemente atraído por eles, esse estado ao qual, apesar de tudo, não falta desejo nem uma extrema vitalidade, e ao qual se dá o nome genérico de vida.


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