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BERNARDO CARVALHO
A construção da realidade
Para quem ainda não tinha notado, esta coluna
nunca foi um modelo de atualidade jornalística. Se não fosse
quinzenal, certamente teria discorrido sobre "Pântano" ("La
Ciénaga"), da argentina Lucrecia
Martel, mais cedo, na semana
passada, e ainda assim já com algum atraso em relação à cobertura da mídia local. Para a minha
infelicidade, só fui assistir ao filme depois de já ter escrito o texto
da coluna anterior.
Se ao menos o segundo longa da
cineasta, "La Niña Santa", que
concorria à Palma de Ouro em
Cannes, tivesse levado algum prêmio no sábado, eu ainda teria a
meu favor um "gancho" jornalístico para justificar o interesse
atrasado por "Pântano".
Mas o que é o meu atraso circunstancial (pelo qual me mortifico) comparado com o fato de
um filme genial como esse, feito
ali ao lado, premiado em Berlim,
em 2001, só ter entrado em cartaz
em São Paulo há três semanas,
mais de três anos depois da estréia mundial, e em uma única
sala?
Num catálogo de entrevistas sobre o cinema argentino independente editado no ano passado pelo Malba, Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires, a cineasta diz que o filme "não está
estruturado em função de uma
trama de ordem clássica", mas de
texturas, de sons e de toda uma
série de relações sensoriais que fazem do próprio relato um elemento físico carregado de uma
sexualidade misteriosa e de um
sentimento de terror que nunca se
explicita.
Os personagens são essencialmente físicos, o que torna primordial não só o processo de seleção
dos atores, mas, em seguida, a
criação de intimidade entre eles.
"Tinha medo de que isso não
acontecesse. (...) Sobretudo, porque há pessoas superconhecidas e
crianças totalmente desconhecidas. Então, fizemos várias reuniões num quarto de hotel de
Buenos Aires, com todos numa
cama de casal. (...) O pessoal do
hotel deve ter achado que estávamos fazendo um filme pornô", diz
Martel.
A produção levou cinco anos.
Durante o primeiro ano, sem dinheiro, a cineasta tentou montar
o elenco, em vão, procurando atores não-profissionais entre os moradores da cidade de Salta, no extremo norte da Argentina, onde
ela nasceu e em cuja Província é
ambientado o filme. "Em Salta,
ninguém tem a ambição de ser
ator de cinema. Então, vinham
por tédio, por curiosidade."
Entre os que apareceram, havia
um homem que insistia em fazer
da mulher uma atriz e, depois de
descobrir que a cineasta estreante
ainda não tinha um tostão, se ofereceu, sem que a mulher soubesse,
para uma colaboração inusitada:
se propunha a construir um forno
crematório. Os mortos pagariam
o filme. Fazendo as contas, Martel concluiu que "teria que matar
e cremar mais ou menos a metade
de Salta".
A anedota do casal dá uma vaga idéia dos personagens de
"Pântano", duas famílias decadentes e seus filhos, entre a cidade
de Salta e um sítio caindo aos pedaços e aparentemente abandonado se não fosse pela presença
ociosa dos proprietários em férias.
Entre os morros e a mata, debaixo de um calor opressivo e de um
céu carregado de nuvens e trovoadas de uma tempestade que
nunca desata, eles são corpos que
seguem trôpegos e estropiados,
cada um para o seu lado, descuidados consigo mesmos, como animais com uma sensualidade à
flor da pele, diante da constante
ameaça de um desastre iminente
(como a tempestade) e da morte.
Passam as tardes jogados pelos
quartos, em seduções incestuosas,
ou tropeçando em copos de vinho
e aperitivos à volta de uma piscina imunda, cujo fundo é tão insondável quanto a mata dos morros ao redor do sítio, por onde os
meninos andam armados, brincando de caçadores com espingardas de verdade, tão selvagens,
sujos, cortados e estropiados
quanto os adultos chocando-se
uns contra os outros dentro de casa.
O que deu origem ao filme foi
justamente uma anedota contada à cineasta por uma amiga, sobre um acidente à beira de uma
piscina. Os cortes e pequenos acidentes marcam a tensão e a consciência desse estado de suspensão,
entre fragilidade e violência.
Entre os meninos armados, atirando a esmo, há um caolho, provável vítima dessas brincadeiras
armadas, que será submetido em
breve a uma operação reparadora, para pôr um olho de vidro. A
expressão no rosto dos meninos
deixa no ar a suspeita de que os
acidentes talvez não sejam tão
acidentais.
Como disse numa entrevista recente a Silvana Arantes, na Folha, Lucrecia Martel entende a
realidade como uma construção.
Todas as ações e todos os pensamentos (e portanto todo o filme)
contribuem para a construção da
realidade. E embora uma parte
da crítica tenha visto em "Pântano" uma metáfora da derrocada
argentina, está claro que essa estranha representação, ao mesmo
naturalista e simbólica, essa estranha construção da realidade,
prefere não chegar a nenhum
acordo com o espectador, mantê-lo num estado de suspensão análogo àquele em que vivem os personagens.
Estão todos entregues, subjugados ao clima e ao entorno, condenados a esse momento de suspensão em que o corpo ainda sobrevive aos acidentes, embora seja
constantemente atraído por eles,
esse estado ao qual, apesar de tudo, não falta desejo nem uma extrema vitalidade, e ao qual se dá o
nome genérico de vida.
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