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CONTARDO CALLIGARIS
De Jerusalém
O Estado brasileiro não pode ser refém de nosso medo, ou seja, não pode apenas mostrar serviço
O MONTE das Oliveiras, em
princípio, oferece uma vista
maravilhosa da Jerusalém
antiga e do Domo da Rocha, o santuário muçulmano que abriga a pedra de onde Maomé teria subido ao
céu por uma noite. Complicação
freqüente na Terra Santa: sobre essa mesma pedra Abraão teria preparado o sacrifício de seu filho
Isaac, até Deus considerar que o
profeta tinha passado no teste e interromper o gesto horrendo que ele
mesmo tinha exigido.
Na minha lembrança de 35 anos
atrás, o Monte das Oliveiras era um
bom lugar para recolher-se e pensar: ele domina o Vale de Josafá
-onde, no fim da história, parece
que todos nos encontraremos para
os acertos finais- e é o lugar onde
Cristo teria meditado sobre seu
destino, na noite de sua prisão.
Hoje, o Monte das Oliveiras oferece a melhor vista do muro da Separação, a muralha de concreto que
Israel está construindo para fechar
"rigorosamente" a fronteira com a
Cisjordânia, onde a Autoridade Palestina tenta construir novo Estado.
As centenas de quilômetros do
muro são uma fatia de gruyère. Há
trechos provisórios de arame farpado, trechos que ainda não existem
e, no próprio muro, abrem-se frestas, por assim dizer, "acidentais".
Por exemplo, a entrada de Belém
é uma espécie de fortificação horrorosa com um posto de bloco que
evoca o muro de Berlim. Mas é possível entrar em Belém por trás, sem
problema algum.
A regra é: os judeus israelenses
não podem entrar em território palestino, os palestinos não podem
entrar em território israelense, só
circulam livremente os israelenses
de origem árabe, os árabes que são
residentes de Israel e os turistas.
Detalhe: os árabes (muçulmanos
ou cristãos) que têm nacionalidade
ou residência israelense, em sua
maioria, defendem a existência de
Israel, onde querem continuar vivendo; num Estado palestino liderado pelo Hamas, eles seriam perseguidos pelos seus costumes ocidentalizados. Muitos não acreditam na possibilidade de um Estado
palestino, pensam que a melhor solução seja devolver a faixa de Gaza
ao Egito e a Cisjordânia à Jordânia.
Ora, o muro cria um Estado de fato, que será irreversível na hora de
um acordo final. A fronteira fechada estrangula a população palestina, que não tem oportunidades de
emprego fora de Israel. Além disso,
o muro é uma grande "oportunidade" econômica: os bairros excluídos
de Israel perdem drasticamente
seu valor imobiliário, e saber quais
serão incluídos se torna um ótimo
negócio. Mas, antes de mais nada, o
muro teria uma função, pretensamente crucial, de segurança.
Basta sentar-se, numa noite de
sábado, nas mesas da rua Yoel Salomão, na Jerusalém moderna, para
conviver com a sensação de que, a
qualquer momento, uma explosão
poderia acabar com os gestos e os
jogos dos jovens que fizeram daquela área seu ponto de encontro.
A maioria da população israelense é a favor do muro; acredita piamente que, de alguma forma, impedirá a circulação de terroristas.
O medo é um instrumento de domínio clássico e eficiente. Seu defeito principal é que ele torna o próprio poder refém do medo de seus
sujeitos: para manter-se e justificar-se, o poder deve mostrar serviço, produzir leis excepcionais ou levantar muros para convencer seu
povo de que ele está, como se diz,
"tomando providências".
Todos sabem que a relativa acalmia destes dias, em Israel, tem a ver
com a vitória do Hamas nas eleições palestinas ou com o novo foco
na luta interna entre Hamas e Fatah e nada a ver com o "muro-gruyère". Mas o muro é o símbolo abstrato de que o governo está agindo.
Mohammed, o motorista que me
esperava na Jordânia, do outro lado
do posto de fronteira da ponte xeque Hussein, enquanto atravessávamos postos de bloco defendidos
por metralhadoras, perguntou-me
de onde eu vinha. Quando respondi
"São Paulo, Brasil", Mohammed,
bem informado, comentou: "Dangerous place" (lugar perigoso).
Pois é, daqui, de longe, resta esperar que o Estado brasileiro não se
torne refém de nosso medo, não tome "providências" apenas para
acalmá-lo (ou enganá-lo), ou seja,
para mostrar serviço.
Entro em férias. A coluna volta
em 15 de junho.
@ - ccalligari@uol.com.br
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