São Paulo, sexta-feira, 25 de maio de 2007

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CARLOS HEITOR CONY

O tempo não muda

O homem continua o mesmo: tendendo para o pior, desde que multiplicado por muitos

PESQUISA DE opinião, encomendada por empresa de comunicação social, traça o novo perfil do consumidor, daquela fatia da população que pode, deseja e paga a própria comunicação entendida em seus diferentes níveis.
As surpresas são muitas -e mais ou menos explicáveis. Trinta anos atrás, os assuntos que mais eram solicitados por essa massa de consumidores tinham genericamente a seguinte prioridade: crime, fofocas sentimentais e sexuais, guerras, armamentos, espionagem, cinema, arte, notas sociais, comportamento, cultura, esporte. Não exatamente nesta ordem.
Hoje, segundo a mesma pesquisa de opinião, dá-se prioridade às fofocas, escândalos políticos e financeiros, violência, televisão, saúde, música popular, lazer, ecologia e beleza. A pesquisa teve o trabalho de indagar sobre os temas que mais são detestados e a resposta, por mais estranha que pareça, foi essa: violência, guerra, sabotagens, atentados, sexo -enfim, alguns dos temas quentes que paradoxalmente são os mesmos de preferência dos consumidores.
Bem, aí estão os resultados. Restam as causas dessa preferência heterogênea e aqui entramos no terreno das hipóteses e do mais encruado subjetivismo.
De minha parte, concluo que as décadas passadas, a partir dos anos 60 e 70, foram alienantes em termos de formação humana, justamente porque foram anos violentos (morte dos dois Kennedys, de Martin Luther King, de revoluções e contra-revoluções, Vietnã, Primavera de Praga); com o fato político aguçado pelas grandes crises que provocaram, entre outros episódios, os movimentos militaristas do Brasil, da Argentina e do Chile, tudo isso somado à explosão de novos gostos artísticos (Beatles, Rolling Stones, jovem guarda) e de manias transitórias como a onda hippie e os hare krishna. Geléia geral que formou e informou os consumidores. Três gerações sucessivas afastaram os temas que tradicionalmente caíam no gosto do público que custava a mudar de opinião.
Não vem ao caso estabelecer a escala do bem e do mal entre os dois momentos. Não considero melhor o homem que nos anos 60 gostava de ler sobre as várias hipóteses da morte de Kennedy, sobre os caminhos da Revolução Cubana, a escalada do Vietnã, a rebelião da juventude no ano de 1968.
Tampouco considero pior o homem que sente repugnância por temas sangrentos e prefere curtir o que chamam de "legado de John Lennon", acrescido ou substituído pelas propostas contidas no último disco de Milton Nascimento. Cada qual tem, a seu modo, o que merece.
O espantoso é que, justamente porque a violência é repugnante aos consumidores de hoje, vivemos hoje a época mais violenta de nossa história, de nosso cotidiano.
Não falo da violência criminal, de âmbito policial ou jurídico, mas a violência como segunda pele do homem, entranhada na política, na economia, na concorrência profissional em todos os patamares. Vive-se -segundo os editoriais da mídia- sob o signo da violência, tornada diária, próxima, colada à nossa carne, carne violentada e violenta ao mesmo tempo.
Somos e sofremos, a todo instante, os efeitos dessa violência e por isso o homem-consumidor-da-comunicação prefere se deliciar com as emoções prometidas pelo novo disco de fulano ou pela audácia revolucionária do cara que vai iluminar o próximo show de Maria Bethânia.
O homem continua o mesmo: enfadonhamente tendendo para o pior, desde que multiplicado por muitos. Não creio que a alma delicada que condena a violência e a comunicação da violência, que considera o escândalo sexual uma vulgaridade de subúrbio, não creio que esse tipo de esteta ou santo esteja preparando um futuro melhor para si ou para humanidade.
Não se trata de dar uma de radical, o homem se retirando para o deserto e comendo gafanhotos, como João Batista, que condenava o gosto e a estética da corte de Herodes e acabou degolado, a cabeça numa bandeja de prata.
A voz que clama no deserto pode parecer uma alternativa para a voz geral da sociedade. Pensando bem, dá tudo na mesma. Não adianta clamar nem aceitar. Muito menos esperar pelo futuro que fará justiça aos injustiçados.
O jeito é ir mesmo na onda, tampando-se a cara para esconder a vergonha. Ao contrário do que disse o poeta Virgílio, os tempos não mudam. Nós é que mudamos.


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