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CARLOS HEITOR CONY
O tempo não muda
O homem continua o mesmo: tendendo para o pior, desde que multiplicado por muitos
PESQUISA DE opinião, encomendada por empresa de comunicação social, traça o novo
perfil do consumidor, daquela fatia
da população que pode, deseja e paga a própria comunicação entendida
em seus diferentes níveis.
As surpresas são muitas -e mais
ou menos explicáveis. Trinta anos
atrás, os assuntos que mais eram solicitados por essa massa de consumidores tinham genericamente a
seguinte prioridade: crime, fofocas
sentimentais e sexuais, guerras, armamentos, espionagem, cinema, arte, notas sociais, comportamento,
cultura, esporte. Não exatamente
nesta ordem.
Hoje, segundo a mesma pesquisa
de opinião, dá-se prioridade às fofocas, escândalos políticos e financeiros, violência, televisão, saúde, música popular, lazer, ecologia e beleza.
A pesquisa teve o trabalho de indagar sobre os temas que mais são detestados e a resposta, por mais estranha que pareça, foi essa: violência,
guerra, sabotagens, atentados, sexo
-enfim, alguns dos temas quentes
que paradoxalmente são os mesmos
de preferência dos consumidores.
Bem, aí estão os resultados. Restam as causas dessa preferência heterogênea e aqui entramos no terreno das hipóteses e do mais encruado
subjetivismo.
De minha parte, concluo que as
décadas passadas, a partir dos anos
60 e 70, foram alienantes em termos
de formação humana, justamente
porque foram anos violentos (morte
dos dois Kennedys, de Martin Luther King, de revoluções e contra-revoluções, Vietnã, Primavera de
Praga); com o fato político aguçado
pelas grandes crises que provocaram, entre outros episódios, os movimentos militaristas do Brasil, da
Argentina e do Chile, tudo isso somado à explosão de novos gostos artísticos (Beatles, Rolling Stones, jovem guarda) e de manias transitórias como a onda hippie e os hare
krishna. Geléia geral que formou e
informou os consumidores. Três gerações sucessivas afastaram os temas que tradicionalmente caíam no
gosto do público que custava a mudar de opinião.
Não vem ao caso estabelecer a escala do bem e do mal entre os dois
momentos. Não considero melhor o
homem que nos anos 60 gostava de
ler sobre as várias hipóteses da morte de Kennedy, sobre os caminhos
da Revolução Cubana, a escalada do
Vietnã, a rebelião da juventude no
ano de 1968.
Tampouco considero pior o homem que sente repugnância por temas sangrentos e prefere curtir o
que chamam de "legado de John
Lennon", acrescido ou substituído
pelas propostas contidas no último
disco de Milton Nascimento. Cada
qual tem, a seu modo, o que merece.
O espantoso é que, justamente
porque a violência é repugnante aos
consumidores de hoje, vivemos hoje
a época mais violenta de nossa história, de nosso cotidiano.
Não falo da violência criminal, de
âmbito policial ou jurídico, mas a
violência como segunda pele do homem, entranhada na política, na
economia, na concorrência profissional em todos os patamares. Vive-se -segundo os editoriais da mídia- sob o signo da violência, tornada diária, próxima, colada à nossa
carne, carne violentada e violenta ao
mesmo tempo.
Somos e sofremos, a todo instante, os efeitos dessa violência e por isso o homem-consumidor-da-comunicação prefere se deliciar com as
emoções prometidas pelo novo disco de fulano ou pela audácia revolucionária do cara que vai iluminar o
próximo show de Maria Bethânia.
O homem continua o mesmo: enfadonhamente tendendo para o
pior, desde que multiplicado por
muitos. Não creio que a alma delicada que condena a violência e a comunicação da violência, que considera o escândalo sexual uma vulgaridade de subúrbio, não creio que esse tipo de esteta ou santo esteja preparando um futuro melhor para si
ou para humanidade.
Não se trata de dar uma de radical,
o homem se retirando para o deserto e comendo gafanhotos, como
João Batista, que condenava o gosto
e a estética da corte de Herodes e
acabou degolado, a cabeça numa
bandeja de prata.
A voz que clama no deserto pode
parecer uma alternativa para a voz
geral da sociedade. Pensando bem,
dá tudo na mesma. Não adianta clamar nem aceitar. Muito menos esperar pelo futuro que fará justiça aos
injustiçados.
O jeito é ir mesmo na onda, tampando-se a cara para esconder a vergonha. Ao contrário do que disse o
poeta Virgílio, os tempos não mudam. Nós é que mudamos.
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