São Paulo, domingo, 25 de maio de 2008

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Mônica Bergamo

bergamo@folhasp.com.br

Luciana Whitaker/Folha Imagem
Andréa e Marieta, no cenário de Fernando Mello da Costa e Rostand Albuquerque, prêmio Shell em 2008

Casa de bonecas

Andréa Beltrão e Marieta Severo dividem o palco em "As Centenárias", comemoram os três anos de seu teatro no Rio e preparam desembarque da peça em SP, em abril de 2009

Marieta Severo abre a porta do teatro Poeira, no Rio de Janeiro. "Está dada a largada!", diz, estendendo o braço para apontar a entrada. "Temos aqui este charmoso café [ainda apontando], em que o público pode experimentar deliciosas quiches, enquanto espera um maravilhoso espetáculo... [pára de repente e grita] Andréa! Andréa! Vem aqui!" De sobretudo verde-militar, calça jeans e camiseta branca, Andréa Beltrão, que já subia a escada para o segundo andar do teatro, volta rindo. "Ah, vai ser assim, é? Tipo visita?", pergunta para Marieta, como se não tivesse mais ninguém por ali. "É, sim. Vamos mostrar o teatro todo!"

 

Por mais meia hora, as duas passeiam pelo Poeira com a coluna. Gargalham quando a sacada aberta dá de frente para um poste com um grande transformador de energia. "Este é nosso lindo transformador", diz Marieta. Ficam sérias quando explicam as parcerias: "Ganhamos toda a madeira para o palco de Belém do Pará", conta Andréa. Voltam a rir por qualquer motivo -"O que é que esse papel está fazendo no chão do banheiro? Alguém me diz?!", dispara Marieta. E elogiam os detalhes do teatro como quem fala de um filho. O "filho" das duas, aliás, vai fazer três anos em junho.
 

Amigas desde 1989, quando atuaram na peça "A Estrela do Lar", elas decidiram montar um teatro "nem que fosse num trailer". Em 2005, abriram as portas, em Botafogo. Formam uma dupla: Marieta explica os projetos, Andréa pontua a história com os nomes dos parceiros -e um sem fim de gargalhadas. "Ai, esta vida é uma pândega!", diz, enxugando as lágrimas do riso ao lembrar do prêmio Shell 2008, quando dedicou a premiação de melhor atriz com a peça "As Centenárias" à "namorada" Marieta.
 

"Eu cheguei lá atrasada e me contaram que ela tinha dito isso. Eu pensei: "E agora? O que eu faço?'". Andréa gargalha. "Nessa idade, meu Deus!", diz Marieta. Andréa ainda gargalha: "Se tivessem me perguntado, eu teria dito que sim, que nós duas namoramos! Só por diversão". E Marieta: "Nessa idade eu tenho que ouvir isso! Uma senhora, meu Deus!". Andréa enxuga as lágrimas. "Ela é assim, despachada demais", conclui Marieta. "Ai, ai... Do caso amoroso, nós já falamos... [mais riso] O que mais?"
 

Às sete da noite, elas fazem um lanchinho de frente para a máquina de lavar -sim, uma máquina e uma centrífuga. É lá que os figurinos do Poeira são limpos. "Esse é o nosso canto preferido. É o mais mulherzinha", diz Andréa. Tudo é muito branco, das paredes aos eletrodomésticos. Marieta apóia o pé direito, de bota de salto alto, na parede. "A gente tinha muita paixão para vender o projeto. Conseguimos parcerias... [pára e se desencosta da parede. Olha o lugar onde havia apoiado o pé e passa a mão, tentando limpar] Depois você passa um paninho [pede à camareira]. Olha, a gente é meio psico. Neurótica? Não, imagina".
 

Devoram torradas com azeite e queijo branco -"Que que é essa coisa branca aqui? Passa mais essa torrada!", diz Andréa à camareira-, chá de erva doce e cidreira, café e cigarros. "Nós atacamos. Somos duas mal educadas", avisa Marieta, recolhendo as migalhas do prato com os dedos. "Bom, vamos lá. Temos muito o que falar." O assunto, claro, é o teatro Poeira.
 

"Nós queríamos que tivesse utilidade pública mesmo, que ocupasse um bom espaço na vida do Rio de Janeiro. Mas não curso pra formação de ator. Tem muito cursinho assim no Rio. A gente achou que ia chover no molhado", conta. A solução foi convidar Aderbal Freire-Filho, marido de Marieta desde 2004, para a curadoria do teatro que, em três anos, abrigou projetos de nomes como Enrique Diaz, Cacá Carvalho e Tadashi Endo. "Queremos dar espaço para que os artistas possam fazer aqui o que o circuito comercial não permite", diz Marieta.
 

Andréa explica: "Teatro comercial soa até pejorativo. O que a gente quer dizer é que não se pode ficar ensaiando meses a fio, por exemplo. Acho que todo artista deve querer fazer um teatro de qualidade, incrível, inteligente, experimental e comercial, sim, para conseguir ficar em cartaz". "Olha, eu estou no teatro há 40 anos, a Andréa, 25. [pausa, sorriso] É, o tempo vai passando e vai aumentando, né? Mas, então... A gente sabe que o teatro vive desses alimentos extras. A realidade engole isso. E nós não queríamos ser engolidas", conclui Marieta.
 

Com "As Centenárias", as duas vivem em clima de festa no teatro: os 160 lugares estão sempre ocupados, mesmo com os convites a R$ 60 e R$ 70. Na TV, estão no ar há nove anos com "A Grande Família". "Ser ator da Globo ajuda, sim. Mas nada supera o boca-a-boca. Não tem novela que resolva uma peça ruim. Quando teatro é chato, é chato de verdade", diz Marieta, esfregando a torrada no azeite.
 

Sobre o valor dos ingressos, elas são taxativas: "Temos que cobrar R$ 60 porque tem a meia-entrada. Eu acho bacana meia-entrada, sabe? Mas no nosso teatro 88% da platéia entra com meia-entrada. 88%! 88%, querida!", diz Andréa. E Marieta: "Aí dizem: "Os artistas são contra a meia-entrada". Não, não somos. Mas os 12% que sobram na platéia têm que pagar por isso".
 

São quase oito da noite e elas vão ao camarim se preparar. Lá, colocarão apliques de cabelo comprido preto, com uma fina trança, pintarão os olhos e vestirão preto. "Mas não dá pra fotografar, não. Fica aquela raiz horrível aparecendo no cabelo, sabe? Quando terminar, a gente avisa", diz Andréa.
 

No palco, como duas carpideiras, vão correr, chorar, cantar e pular. Para Marieta, que se veste até de Lampião para a peça, resta algum desafio após 40 anos de palco? "Eu faço sempre uma cega em cima de uma trave, não sei por quê. Andar com uma xícara de chá de um lado para o outro e sentar elegantemente no sofá seria ótimo. Podia ser a próxima peça, né?"
 

"Esse espelho é um horror. Você vê coisas que ninguém precisa ver", lamenta Andréa, de frente para um espelho de aumento. "E, invariavelmente, você pega uma pinça", completa Marieta, que começa a assobiar "O Cio da Terra". Ao lado das maquiagens, Marieta tem fotos das três filhas do casamento com Chico Buarque e os cinco netos; Andréa aparece com os três filhos. "É uma invenção muito bem inventadinha, o amor. É a coisa mais bonita que inventaram pra dar sentido à vida", diz Marieta. Andréa não perde a piada: "É uma filósofa. É uma filósofa...".


AUDREY FURLANETO (reportagem)


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