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CRÍTICA HISTÓRIA
Judt e a crônica do século (já) esquecido
Em "Reflexões sobre um Século Esquecido", historiador trata de temas na intersecção entre política e cultura
OTAVIO FRIAS FILHO
DIRETOR DE REDAÇÃO
O século 20 foi único e contraditório. O ritmo do aumento da população humana no
período não tem precedentes, passando de menos de 2
bilhões em 1900 a mais de 6
bilhões em 2000.
Graças aos avanços em saneamento, medicina, produtividade econômica e legislação social, nunca tantos viveram tanto e tão bem. Basta dizer que a expectativa de vida
(média mundial) era estimada em 40 anos por volta de
1900 e hoje é de 68 anos.
Ao mesmo tempo, o século
20 foi um museu de horrores,
já que nele tudo é superlativo. Duas formas de despotismo (tão devastadoras que para elas se inventou um novo
termo, totalitarismo) ensanguentaram a era.
PSICOPATAS
Em nome de ambas, apenas três psicopatas (Hitler,
Stálin e Mao) conseguiram
levar à morte no mínimo 120
milhões de pessoas. É como
se a sociedade moderna de
massas, fruto da indústria,
fosse um fenômeno novo e
perigoso, parecido com a radiatividade, que os seres humanos não domaram sem
antes sofrer graves danos.
O britânico Tony Judt é um
dos principais intérpretes daquele século extraordinário.
Ele é um dos tantos intelectuais de esquerda que se frustraram com os resultados da
sucessiva aplicação prática
do marxismo, na União Soviética, na China, no Leste
Europeu e alhures.
Seu coração continua a bater à esquerda, e a tarefa a
que ele se propõe como historiador é resgatar o que houve
de "bom" no século 20, enquanto ressalta que se julgarmos seu lado medonho uma
página virada poderemos ter
de experimentá-lo outra vez.
Os erros do marxismo parecem ter sido essencialmente dois. Ignorar que há certa
rigidez nas leis da economia,
que elas não podem ser alteradas a bel-prazer sem que
disso resulte um efeito bumerangue, que elas são, em suma, um fenômeno de "física
social" em grande parte
alheio à nossa consciência.
IDEALISTAS FANÁTICOS
O outro erro foi desconhecer que, preconizando abertamente uma ditadura da
maioria (a do proletariado), a
doutrina levaria ao governo
primeiro uma facção de idealistas fanáticos, depois uma
camarilha corrompida e enfim enfeixaria poderes de
deus asiático nas mãos do
mais calhorda no grupo, a esta altura já enlouquecido pela vertigem.
Judt não faz vista grossa a
essas realidades desagradáveis. Ao contrário, ele as enfatiza, e não será a menor de
suas muitas qualidades como pensador e escritor essa
de enfrentar os fantasmas da
decepção, qualidade exibida, aliás, com desassombro
estarrecedor, no depoimento
sobre sua própria condição
gravemente enferma publicado no último dia 10 de janeiro pelo caderno Mais!,
aqui na Folha.
Seus temas são variados,
na intersecção entre política
e cultura: Hannah Arendt e o
nazismo, a turbulenta história intelectual da França no
século 20, a Guerra Fria e a
crise do Estado de bem-estar
social. O fio condutor talvez
seja essa notável disposição
de recuperar o humanismo
que jaz nos escombros dos
tremendos experimentos sociais daquele século.
NAS BRUMAS DO TEMPO
Diferente de muitos intelectuais da nossa tradição
ibérica ou latina, o autor tem
a clareza escorreita e concisa
dos anglo-americanos. Diferente, também, de tantos intelectuais em qualquer tradição, seu empenho de se aproximar da verdade o afasta
dos dogmas, dos clichês e
das táticas ideológicas.
Além disso, seu livro é um
belo (e terrível) panorama de
um século que já se afasta
nas brumas do tempo e que
os jovens precisam conhecer.
REFLEXÕES SOBRE
UM SÉCULO ESQUECIDO:
1901-2000
AUTOR: Tony Judt
TRADUÇÃO: Celso Nogueira
EDITORA: Objetiva
QUANTO: R$ 59,90 (503 págs.)
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