São Paulo, terça-feira, 25 de maio de 2010

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CRÍTICA HISTÓRIA

Judt e a crônica do século (já) esquecido

Em "Reflexões sobre um Século Esquecido", historiador trata de temas na intersecção entre política e cultura

OTAVIO FRIAS FILHO
DIRETOR DE REDAÇÃO

O século 20 foi único e contraditório. O ritmo do aumento da população humana no período não tem precedentes, passando de menos de 2 bilhões em 1900 a mais de 6 bilhões em 2000.
Graças aos avanços em saneamento, medicina, produtividade econômica e legislação social, nunca tantos viveram tanto e tão bem. Basta dizer que a expectativa de vida (média mundial) era estimada em 40 anos por volta de 1900 e hoje é de 68 anos.
Ao mesmo tempo, o século 20 foi um museu de horrores, já que nele tudo é superlativo. Duas formas de despotismo (tão devastadoras que para elas se inventou um novo termo, totalitarismo) ensanguentaram a era.

PSICOPATAS
Em nome de ambas, apenas três psicopatas (Hitler, Stálin e Mao) conseguiram levar à morte no mínimo 120 milhões de pessoas. É como se a sociedade moderna de massas, fruto da indústria, fosse um fenômeno novo e perigoso, parecido com a radiatividade, que os seres humanos não domaram sem antes sofrer graves danos.
O britânico Tony Judt é um dos principais intérpretes daquele século extraordinário. Ele é um dos tantos intelectuais de esquerda que se frustraram com os resultados da sucessiva aplicação prática do marxismo, na União Soviética, na China, no Leste Europeu e alhures.
Seu coração continua a bater à esquerda, e a tarefa a que ele se propõe como historiador é resgatar o que houve de "bom" no século 20, enquanto ressalta que se julgarmos seu lado medonho uma página virada poderemos ter de experimentá-lo outra vez.
Os erros do marxismo parecem ter sido essencialmente dois. Ignorar que há certa rigidez nas leis da economia, que elas não podem ser alteradas a bel-prazer sem que disso resulte um efeito bumerangue, que elas são, em suma, um fenômeno de "física social" em grande parte alheio à nossa consciência.

IDEALISTAS FANÁTICOS
O outro erro foi desconhecer que, preconizando abertamente uma ditadura da maioria (a do proletariado), a doutrina levaria ao governo primeiro uma facção de idealistas fanáticos, depois uma camarilha corrompida e enfim enfeixaria poderes de deus asiático nas mãos do mais calhorda no grupo, a esta altura já enlouquecido pela vertigem.
Judt não faz vista grossa a essas realidades desagradáveis. Ao contrário, ele as enfatiza, e não será a menor de suas muitas qualidades como pensador e escritor essa de enfrentar os fantasmas da decepção, qualidade exibida, aliás, com desassombro estarrecedor, no depoimento sobre sua própria condição gravemente enferma publicado no último dia 10 de janeiro pelo caderno Mais!, aqui na Folha.
Seus temas são variados, na intersecção entre política e cultura: Hannah Arendt e o nazismo, a turbulenta história intelectual da França no século 20, a Guerra Fria e a crise do Estado de bem-estar social. O fio condutor talvez seja essa notável disposição de recuperar o humanismo que jaz nos escombros dos tremendos experimentos sociais daquele século.

NAS BRUMAS DO TEMPO
Diferente de muitos intelectuais da nossa tradição ibérica ou latina, o autor tem a clareza escorreita e concisa dos anglo-americanos. Diferente, também, de tantos intelectuais em qualquer tradição, seu empenho de se aproximar da verdade o afasta dos dogmas, dos clichês e das táticas ideológicas.
Além disso, seu livro é um belo (e terrível) panorama de um século que já se afasta nas brumas do tempo e que os jovens precisam conhecer.


REFLEXÕES SOBRE UM SÉCULO ESQUECIDO: 1901-2000

AUTOR: Tony Judt
TRADUÇÃO: Celso Nogueira
EDITORA: Objetiva
QUANTO: R$ 59,90 (503 págs.)



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