São Paulo, sexta-feira, 25 de junho de 2004

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CRÍTICA

Bom documentário mostra Justiça horrorosa

LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

No documentário de Maria Augusta Ramos não há narrador, não há depoimento, não há estatística, não há legenda, não há debate ou controvérsia.
Os diálogos captados nas salas de audiência do fórum criminal do Rio de Janeiro são a espinha dorsal do enredo, mas o filme é permeado por cenas do cotidiano dos personagens envolvidos -a cidade sitiada, a vida de presos e familiares, a classe média fazendo suas refeições depois de um dia como outro qualquer. O resultado é o mais sombrio retrato da Justiça brasileira até hoje levado às telas de cinema.
É surpreendente a naturalidade com que os protagonistas se permitem filmar. Não há inibição aparente, nem teatralidade. Não há câmara indiscreta, mas é como se a câmara estivesse oculta, e isso permite que indiferença e tragédia, desigualdade e franqueza se entrelacem e transpareçam.
A indiferença do juiz que não percebe que o réu sentado à sua frente é aleijado. A pequena tragédia do parto solitário e da mulher que não pode, sozinha, registrar em cartório o nome do pai da sua filha. A inutilidade da explicação do juiz, para réus absortos, sobre cada passo do procedimento que ameaça suas vidas. A distância do julgador, a discrepância vocabular dos acusadores: réu é "increpado", rua é "artéria"... A resignação da esforçada e impotente defensora pública diante da carteira não assinada do seu "cliente", que não confirmará a existência do emprego na padaria.
O documentário mostra um jogo de contrastes mais ou menos sutil, às vezes surrealistas.
O rapaz preso no curso do processo, solto depois de condenado. A mãe que considera a primeira prisão do filho um "livramento", o réu que prefere não recorrer da sentença, exageradamente dura, para não "atrasar" sua vida. O ridículo da beca, os chinelos dos detentos. A cadeia que não serve "janta" para o preso, o jantar austero da defensora, feito de carne assada e conversa fiada sobre "juízes que condenam sempre que podem". O canto revoltado do Comando Vermelho, "amanhã venceremos", o garoto atrofiado e asmático, 18 anos de idade e 38 quilos de peso, empinador de pipa, réu de tráfico.
Juízes que folheiam papéis em busca da verdade, a polícia corrupta e seus "acertos", responsável pela produção desses mesmos papéis. A juíza severa que desconfia de todos, o juiz que tenta, com ternura, arrancar uma informação da própria filha. O transe frenético dos fiéis, o "basta de Deus" na igreja do bairro; o discurso frenético da autoridade, o "basta de inércia" contra o crime na cerimônia de posse da desembargadora no tribunal.
Se falta algo ao documentário, é a presença da vítima, assaltada ou ferida, a figura que, afinal, justifica o funcionamento dessa usina de triturar e segregar pessoas em prisões que lembram navios negreiros. Sem ela, a trama da violência urbana não se completa. Mas nem por isso o filme é parcial. Todos somos vítimas de tudo.
O documentário é bom, e o planeta Justiça, horroroso. É assistir e depois fingir que eles não existem.


Justiça
   
Direção: Maria Augusta Ramos
Produção: Brasil/Holanda, 2004
Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco



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