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CRÍTICA
Bom documentário mostra Justiça horrorosa
LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
No documentário de Maria
Augusta Ramos não há narrador, não há depoimento, não há
estatística, não há legenda, não há
debate ou controvérsia.
Os diálogos captados nas salas
de audiência do fórum criminal
do Rio de Janeiro são a espinha
dorsal do enredo, mas o filme é
permeado por cenas do cotidiano
dos personagens envolvidos -a
cidade sitiada, a vida de presos e
familiares, a classe média fazendo
suas refeições depois de um dia
como outro qualquer. O resultado
é o mais sombrio retrato da Justiça brasileira até hoje levado às telas de cinema.
É surpreendente a naturalidade
com que os protagonistas se permitem filmar. Não há inibição
aparente, nem teatralidade. Não
há câmara indiscreta, mas é como
se a câmara estivesse oculta, e isso
permite que indiferença e tragédia, desigualdade e franqueza se
entrelacem e transpareçam.
A indiferença do juiz que não
percebe que o réu sentado à sua
frente é aleijado. A pequena tragédia do parto solitário e da mulher
que não pode, sozinha, registrar
em cartório o nome do pai da sua
filha. A inutilidade da explicação
do juiz, para réus absortos, sobre
cada passo do procedimento que
ameaça suas vidas. A distância do
julgador, a discrepância vocabular dos acusadores: réu é "increpado", rua é "artéria"... A resignação da esforçada e impotente defensora pública diante da carteira
não assinada do seu "cliente", que
não confirmará a existência do
emprego na padaria.
O documentário mostra um jogo de contrastes mais ou menos
sutil, às vezes surrealistas.
O rapaz preso no curso do processo, solto depois de condenado.
A mãe que considera a primeira
prisão do filho um "livramento",
o réu que prefere não recorrer da
sentença, exageradamente dura,
para não "atrasar" sua vida. O ridículo da beca, os chinelos dos detentos. A cadeia que não serve
"janta" para o preso, o jantar austero da defensora, feito de carne
assada e conversa fiada sobre "juízes que condenam sempre que
podem". O canto revoltado do
Comando Vermelho, "amanhã
venceremos", o garoto atrofiado e
asmático, 18 anos de idade e 38
quilos de peso, empinador de pipa, réu de tráfico.
Juízes que folheiam papéis em
busca da verdade, a polícia corrupta e seus "acertos", responsável pela produção desses mesmos
papéis. A juíza severa que desconfia de todos, o juiz que tenta, com
ternura, arrancar uma informação da própria filha. O transe frenético dos fiéis, o "basta de Deus"
na igreja do bairro; o discurso frenético da autoridade, o "basta de
inércia" contra o crime na cerimônia de posse da desembargadora no tribunal.
Se falta algo ao documentário, é
a presença da vítima, assaltada ou
ferida, a figura que, afinal, justifica
o funcionamento dessa usina de
triturar e segregar pessoas em prisões que lembram navios negreiros. Sem ela, a trama da violência
urbana não se completa. Mas nem
por isso o filme é parcial. Todos
somos vítimas de tudo.
O documentário é bom, e o planeta Justiça, horroroso. É assistir e
depois fingir que eles não existem.
Justiça
Direção: Maria Augusta Ramos
Produção: Brasil/Holanda, 2004
Quando: a partir de hoje no Espaço
Unibanco
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