São Paulo, sábado, 25 de junho de 2011

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ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR

A vedete gorda e o químico tcheco


Depois das mortes de Wilza Carla e Otto Gottlieb, o Brasil ficou bem menos divertido e inteligente


DOIS ÍDOLOS morreram esta semana. Ídolos meus, se você me permite: a comediante Wilza Carla e o químico orgânico Otto Gottlieb.
Wilza tinha 75 anos. Partiu esquecida, sem dinheiro, quase sozinha. O professor Otto morreu aos 90. Sentia-se, suponho, realizado. Foi o químico brasileiro que chegou mais perto de ganhar o Nobel. Wilza e Otto marcaram minha juventude.
Ela por refletir o Brasil mais brasileiro. Vedete do teatro de revista, jurada do Chacrinha e do Silvio Santos, atriz de novelas e de pornochanchadas. A gostosa que ganhou peso. Ferina, debochada, rainha obesa das tardes televisivas.
O professor Otto, pelas razões opostas. Por representar uma fresta cosmopolita, não-brasileira, em um ambiente provinciano e autorreferente, o do Instituto de Química da USP dos anos 80, onde me formei.
Um lugar de disciplina e método, mas não de efervescência intelectual. De racionalidade e ciência prática, mas não de debate sobre o mundo e seus problemas (devo estar sendo injusto, mas, do alto dos meus 18 anos, assim era o IQ que eu enxergava).
O professor Otto, brasileiro nascido em Brno, na então Tchecoslováquia, destoava daquilo. Nunca fui seu aluno ou conversei com ele. Mas, em meio àqueles 12 blocos frios de salas de aula e laboratórios, eu o via como uma figura soberana.
Um pesquisador de grande produtividade, muito antes de as universidades brasileiras cobrarem isso de seus professores. Que já havia publicado mais de 500 trabalhos, numa época em que muitos cientistas de fama no Brasil não chegavam a um décimo disso.
Gottlieb e seus discípulos estudavam um tema de vanguarda, então muito distante de estar na moda -a biodiversidade e a preservação das florestas brasileiras. Já naquele tempo se dizia: "O professor Otto é o único químico brasileiro com estatura para um Nobel".
O universo de Wilza Carla era outro. Sua vida acontecia nas periferias da cultura ultrapopular do Brasil. Jurada de programas de calouros, provavelmente ganhando uma ninharia por participação. Atriz de pornôs "light" que nunca deve ter sido decentemente paga por um filme. Era uma celebridade fadada ao esquecimento, como tantos de seus contemporâneos.
Não foi conhecida fora do Brasil, exceto por um feito bizarro: a participação, com José Lewgoy e Max von Sydow, no filme sueco "Palmeiras Negras" (1967). Parece lenda, mas está na internet: tiny.cc/ 428r7. Para a geração de Wilza Carla, fama e fortuna nunca andaram juntas.
Sua morte foi amplamente noticiada nos principais jornais impressos, na web e na TV. Mas, no enterro, não havia nenhum colega. Só gente muito próxima. Nas imagens, nem uma dúzia de pessoas.
A filha única de Wilza deu uma declaração dilacerante: "Na verdade, eu sinto assim: para muitos, ela já tinha morrido há muito tempo".
O oposto aconteceu com Otto Gottlieb. Era desconhecido do grande público, mas muito respeitado e querido por seus pares. Imagino que estes tenham comparecido em massa ao enterro.
O professor investigava a química dos produtos naturais. Desvendava cada uma das dezenas de substâncias presentes numa planta. Praticava ciência básica com aplicações práticas evidentes.
Um possível remédio que inferniza os cientistas que tentam fabricá-lo em laboratório, pode estar ali, pronto, na natureza, esperando que alguém como o professor Otto seja capaz de descobri-lo.
É uma pena que nem a atriz nem o cientista fossem do mundo de língua inglesa. Se fossem, mereceriam um daqueles obituários precisos e inusitados que a revista "The Economist" publica toda semana, tão bem escritos que é melhor nem tentar imitar.
Assim, na falta da "Economist", elogio aqui esses dois brasileiros marcantes, e quem sabe os apresento a uma nova geração.
A jovem mulher de um amigo me contou, esta semana, que jamais tinha ouvido falar de Wilza Carla. Como também não é química, imagino que desconheça, igualmente, vida e obra de Otto Gottlieb.
Espero que ela leia este texto. E que eu tenha sido capaz de explicar que, depois das mortes de Wilza Carla e Otto Gottlieb, o Brasil ficou bem menos divertido, e bem menos inteligente.

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Ferreira Gullar


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