São Paulo, quinta, 25 de junho de 1998

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MÚSICA ERUDITA - CEM ANOS DA DEUTSCHE GRAMMOPHON
Beethoven incorpora tecnologia

Reprodução
Maurizio Pollini, pianista que gravou em CD da Deutsche Grammophon as sonatas op. 22, 26 e 53 de Beethoven


ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

Inovação e audácia nem sempre estão onde mais se espera. Um movimento que passa ao seguinte sem quebra de continuidade; o uso do pedal para compor motivos musicais; um acorde de tônica, no início, que só se revela como tônica compassos adiante.
Uma simples sequência de movimentos (andante-scherzo-marcha fúnebre-alegro), que rompe desde logo com o modelo e implica "quase uma fantasia"; a transformação da forma num processo instável, de descoberta para o ouvinte. Todos são exemplos colhidos das três sonatas de Beethoven (1770-1827) interpretadas por Maurizio Pollini em novo CD.
Qualquer sonata de Beethoven gravada por Pollini já seria o bastante para atrair interesse. Mas, no caso desse disco, não é a música nem o músico que inicialmente chamam mais a atenção.
Série especial
Incluído numa série especial comemorando os cem anos da Deutsche Grammophon, o CD é o primeiro trabalho desse porte a incorporar uma novidade tecnológica: além de gravação, funciona como CD-ROM, com a partitura da música, ensaios de apoio, cronologia e retratos do compositor, glossário de termos e informações sobre o pianista.
Concebido para o ouvinte culto, mas não para o especialista, o CD na verdade funciona como verbete de enciclopédia -nem mais, nem menos, em que pesem as diferenças de meio.
Os textos foram escritos pelo musicólogo Barry Cooper, autor de "Beethoven - Um Compêndio", editado no Brasil pela Zahar. Dividem-se em dois assuntos: o compositor (relações pessoais, carreira, política etc.) e as sonatas (análises descritivas, com chamadas para o disco e o glossário).
No conjunto, as informações são precisas e variadas. As análises são irretocáveis, embora presas à descrição formal dos movimentos. As partituras são um bônus e podem ser editadas e impressas em casa. Na tela, um cursor segue as notas, acompanhando o disco.
Para alunos de música, o "CD-pluscore" representa, desde já, um instrumento imprescindível. É uma novidade que tem tudo para se tornar costumeira e que só pode ter efeito positivo (a gravadora promete mais cinco CDs nesse formato até o final do ano).
Mas não se pode deixar de notar um descompasso entre a inovação tecnológica e o conservadorismo do conteúdo. A moral da história é que a tecnologia, seja em papel ou microchips, não garante a natureza, nem a qualidade, do pensamento. E a ironia é lembrar que Beethoven, acima de qualquer outro, faz da tecnologia da composição -a sonata- o terreno em que a música se reinventa.
Música, pensamento e forma compõem, nas sonatas, um campo da existência. Tecnologia e conteúdo estão dentro um do outro, de modo tal que nos obriga a pensar, com menos inocência, sobre o que há de inovação nas novas tecnologias.
Para tanto, é preciso, em primeiro lugar, a colaboração de um pianista. Desde 1993, Pollini vem apresentando ciclos completos das sonatas de Beethoven em Munique, Milão, Nova York, Paris, Viena e Londres. Foi na temporada vienense, no início do ano passado, que foram feitas as gravações ao vivo desse CD.
A sonata op. 53, "Waldstein", já fora gravada por ele em outro disco, de 1989. Uma comparação não favorece a performance ao vivo, mas revela um fenômeno extraordinário: tanto o primeiro quanto o último movimento têm exatamente a mesma duração nas duas versões, em estúdio e ao vivo.
Que um pianista tenha tamanho controle do pulso musical, a ponto de incorporar uma concepção precisa de tempo ao longo de uma década, sem variar um segundo, é uma façanha que ultrapassa performances de computador.
Não menos notável é que isso ocorra mesmo quando a interpretação dos detalhes mudou. Um exemplo se escuta no início da op. 53: a pequena escala descendente, que responde aos acordes dos três primeiros compassos, é tocada com exatidão de pianoforte na gravação antiga e com "non-chalance" irônica na mais recente.
De modo geral, Pollini diferencia muito, agora, a op. 53 do estilo mozartiano da op. 22 -injustamente pouco conhecida, como tantas obras da primeira fase do compositor-, levando a extremos as descobertas de timbre e forma que já se fazem ouvir na op. 26 (predileta de Chopin).
Moral da história: quem estudar a partitura das sonatas nesse CD-ROM vai descobrir a diferença entre o texto impresso da música e o que um grande músico é capaz de extrair dele, no piano. E a ironia é pensar que essas lições são, por definição, temporárias: uma visão das coisas, não uma prescrição, em que pese a sombra de autoridade conferida ao disco pelo caráter de obra de referência.
Quase a despeito de si, então, esse CD serve para nos mostrar, por outras vias, que Beethoven não acaba no texto, nem no pianista.
Em meados do século 19, o ensaísta Walter Pater podia afirmar que "toda arte aspira constantemente à condição de música". Hoje, quando todas as artes aspiram à condição de vídeo, vai se tornando impossível sustentar uma experiência humana sem imagens. Mas, afinal, o que podem nos ensinar retratos, partituras?
Toda ajuda é bem-vinda para fazer ouvir música. Mas nada substitui a disciplina pessoal e precária, talvez perenemente anacrônica da audição -que é onde começa a arte do intérprete e onde termina a da composição.
As verdadeiras inovações e a verdadeira audácia desse disco não estão na tela do computador. Para chegar a tanto, não é preciso imagem. Só enxerga a música quem não está vendo nada. Só se chega à música no escuro. E para tanto, não é preciso muita engenharia. Basta fechar os olhos, e escutar.

Disco: Beethoven, Sonatas op.22, 26 e 53 Artista: Maurizio Pollini, piano Lançamento: Deutsche Grammophon Quanto: R$ 25



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