São Paulo, terça-feira, 25 de julho de 2006

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Réplica

Reflexões de Coutinho sobre a Espanha são superficiais e inexatas

RICARDO PEIDRÓ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sou assíduo leitor da Folha e destaco especialmente a imparcialidade de suas análises e o interesse que mostra pelos temas espanhóis, cujo último episódio seria o artigo do dia 16 "Os Anões e os Netos", escrito por Clóvis Rossi (pág. A2) Leio, porém, com perplexidade o artigo de João Pereira Coutinho, intitulado "O Sangue de Espanha" (Ilustrada, dia 19/7, pág. E2)
Desejo fazer algumas considerações sobre as reflexões do sr. Pereira Coutinho, que mistura a inexatidão com a superficialidade sobre um tema que custou 1 milhão de mortos, destruiu um país e iniciou uma sangrenta e longa ditadura.
Lamento, por outro lado, o calor que sofreu o sr. Pereira Coutinho, que deve ter afetado o seu bom senso; de fato, não foi Carlos 5º, senão Felipe 2º, quem primeiro transferiu a corte para Madri.
O que ele denomina uma Catalunha semi-independente é, na realidade, um processo constitucional validado por um recente referendum que maioritariamente aprovou a proposta das forças políticas catalãs para atualizar o Estatuto (Constituição Estadual) de 1978. Tanto o processo catalão quanto o do País Basco são fruto primordial da repressão que o regime franquista exerceu sobre estes dois componentes essenciais da Espanha plural.
O processo do País Basco é mais complexo, pois veio acompanhado de uma sucessão de sangrentos atos terroristas, recentemente interrompidos, o que permitiu dar início a um corajoso compromisso de negociação política, iniciado pelo atual governo, justamente com base no anúncio do fim do terrorismo.
Voltando à Guerra Civil, cujo início completou 70 anos, a versão do sr. Pereira Coutinho, que ele pretende inovadora através de uma certa historiografia -sobretudo de Anthony Beevor-, obedece ao próprio paradigma do franquismo, que, na sua propaganda, apresentava o conflito civil ao qual deu origem e venceu não como o que foi (a ante-sala da Segunda Guerra Mundial), senão como o primeiro passo da Guerra Fria.
Qualquer que fosse o pretexto para o levante militar, o certo é que o governo legítimo da República tinha o apoio do sistema constitucional de então, que as forças da reação, encabeçadas por um setor de militares, conseguiram desmontar.
O certo é que isso aconteceu ante a indiferença das potências ocidentais, que, através de uma política de não-intervenção, de fato permitia o apoio maciço em meios e pessoas dos regimes fascistas à insurgência franquista. O "appeasement" que culminaria em Munique somente serviu para incrementar o apetite fascista.
Tão somente a União Soviética e, em menor medida, o México estiveram com o regime legítimo da República, embora boa parte da opinião pública democrática, incluída a do Brasil, estivesse a favor do governo constitucional.
Na realidade, o sr. Pereira Coutinho simplificou os dados das eleições legais que tiveram lugar na Espanha de 1936, cujo resultado foi: esquerda: 4,7 milhões de votos; direita: 3,997 milhões de votos; centro: 449 mil votos e nacionalistas bascos: 139 mil votos. Como a lei eleitoral favorecia coalizões, produziu-se de fato uma sólida maioria das cadeiras da Frente Popular.
É francamente inaceitável especular sobre o que teria sido a República Espanhola caso tivesse ganhado a guerra e afirmar que a Espanha teria se convertido na Romênia de Ceaucescu.
A Espanha e o Brasil compartilham transições democráticas, e é amplamente conhecido o impacto da transição espanhola na brasileira. Não obstante, no caso espanhol, a maturidade democrática permite hoje reexaminar o passado, que por consenso dos atores políticos foi relegado no momento em que se produziu a dita transição.
São os netos da Guerra Civil as pessoas que com maior interesse acompanham a análise do que aconteceu naquela época. Com isso, consolida-se ainda mais a coexistência pacífica do povo espanhol, com a certeza de que não há tabus na democracia.


RICARDO PEIDRÓ é embaixador da Espanha no Brasil

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