São Paulo, quarta-feira, 25 de julho de 2007

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MARCELO COELHO

O tango é a melhor solução


Para além da comédia, "O Tango de Rashevski" aborda questão política crucial hoje em dia


NUM POEMA célebre, Manuel Bandeira dizia que, quando não há mais nada a fazer, a única coisa que resta é "tocar um tango argentino". Não há casos de doença grave na família Rashevski, mas é como se os seus membros, divididos entre Paris e Israel, conhecessem bem a recomendação do poeta brasileiro.
Como acontece em toda família, os Rashevski se desentendem, arrependem-se das gafes cometidas à mesa do jantar, às vezes falam mal uns dos outros, sofrem um bocado pelo que disseram e, mais ainda, pelos silêncios que deixaram prevalecer. Mas, quando tudo parece perdido, têm um jeito próprio de tocar -e dançar- um tango argentino.
Escondido numa única sala do Belas Artes, "O Tango de Rashevski" é uma pequena jóia cinematográfica, bem distante da mordaz tragicidade do poema bandeiriano. Nessa comédia delicada, que às vezes lembra um Woody Allen mais depurado, sem nervosismo e frenesis, cada personagem esbanja vitalidade e argumentos para as decisões que toma -ou que não consegue tomar.
Vamos aos poucos ficando íntimos da família toda, que não é pequena. Soa a campainha do apartamento: pelo simples jeito de tocar, já sabemos de quem se trata. É Nina, uma jovem impulsiva, obcecada pelas próprias raízes judaicas, capaz de acrobacias mentais engraçadíssimas para recusar o assédio de seu pretendente.
Dolfo Rashevski, o seu avô, é um sobrevivente dos campos de concentração nazistas; cidadão parisiense, sem nenhum preconceito contra os árabes da vizinhança, não se mostra especialmente ligado nas espinhosas questões da religião e da identidade judaica. É, por assim dizer, um filho da modernidade. Cada pessoa vale pelo que é, e sua ética individual se baseia em princípios nada rígidos, mas suficientes: decência, respeito, amor ao próximo.
Logo nas primeiras cenas do filme, ele se confronta com o cunhado, que também viveu a tragédia da Segunda Guerra e encontrou no judaísmo ortodoxo e no sionismo radical a única reposta possível para a situação. Recolhido a uma sinagoga em pleno deserto, despreza duramente os judeus que não migraram para Israel.
"Não são mais judeus", declara, com olhar terrível. Pega um copo d'água e derrama o conteúdo sobre a areia do chão: "É isto, nada mais do que isto, o que eles significam".
Entre o radicalismo do rabino e a tolerância de Dolfo, os membros da família Rashevski se situam como bem entendem. Qual o sentido exato de "ser judeu"? Trata-se de algo dado, automático, ou de algo que se deve buscar incansavelmente?
A questão dá margem a situações divertidas e comoventes ao longo do filme. Mais do que uma simples comédia familiar, entretanto, "O Tango de Rashevski" parece abordar, nas entrelinhas, uma questão política sem dúvida crucial hoje em dia -para franceses, israelenses, árabes ou brasileiros.
Corro o risco de ser muito rudimentar, mas tento resumir em poucas linhas a transformação das atitudes políticas nos últimos 50 anos. Deixaram de se pautar pela divisão entre as classes e passaram a enfocar as chamadas "identidades": nacionais, sexuais, religiosas, étnicas.
Uma "política de identidades" apresenta paradoxos que a "política de classes" podia, teoricamente, ignorar. Um exemplo extremo: determinado partido operário podia dizer, nos áureos tempos, que sua atuação visava a criar uma sociedade sem classes. Mas uma organização de direitos dos negros não propõe, evidentemente, uma sociedade "sem raças". Num caso, lutava-se contra a desigualdade negando as diferenças. Noutro caso, a luta contra a desigualdade impõe freqüentemente a afirmação das diferenças.
A identidade, que era um ponto de partida para a luta política, se torna também um objeto de construção voluntária. No filme de Sam Garbarski, não basta à personagem Nina "ser judia"; ela precisa fabricar o seu próprio judaísmo.
A maior ironia do filme é que a família Rashevski acaba se encontrando e se unindo não em torno de múltiplas autodefinições inspiradas na origem judaica, mas sim em torno de uma dança que, sendo argentina, é também universal.
O tango, coisa fácil de ouvir e difícil de dançar, talvez seja metáfora de algo que o velho Dolfo Rashevski conhece bem: um espírito de tolerância sem fronteiras, em que cada ser humano, antes de ser judeu, árabe, negro ou branco, é sobretudo um ser humano; nada menos, nada mais do que isso.

coelhofsp@uol.com.br


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