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MARCELO COELHO
Stalinismo
Fala-se -com razão- na
herança stalinista de vários
membros do atual governo. É
maior do que eu pensava. Não
que eu esteja surpreso: os amores
pelo regime de Cuba, as alianças
com o PC do B, as tendências para
o culto à personalidade em torno
de Lula e para a rigidez na militância faziam-se sentir no PT havia bastante tempo.
Nunca me alarmei demais com
isso. Também sempre foram muito fortes e caracteristicamente petistas a aposta na autonomia dos
movimentos sociais, a crença numa democratização radical da
sociedade, a obsessão ética, o velho "basismo" da sua organização -antídotos suficientes, a
meu ver, contra o ranço totalitário.
Mesmo a impaciência, o imediatismo, a aversão do PT a táticas conciliatórias tinham mais de
trotskistas, se quisermos, que de
stalinistas. O estilo do PT não
combinava com a pachorra de
ocupar aos poucos a máquina do
Estado, a aptidão para engolir sapos e o gosto pela política de bastidores, típica da esquerda obediente ao regime soviético.
Do ponto de vista da sua cultura política, pelo menos, o PT buscava muito mais situar-se no "lado da sociedade" do que no "lado
do Estado". Já do ponto de vista
de suas preferências econômicas,
é claro que havia muito mais estatismo do que liberalismo no PT:
mas a herança, aqui, nem precisa
ser chamada de stalinista. Poderíamos igualmente chamá-la de
varguista, desenvolvimentista,
geiseliana, social-democrata, nacionalista ou corporativista, conforme a conveniência da argumentação.
Não falei da herança católica,
nem do puritanismo "protestante" que coexistem no PT, ao lado
da herança pós-68, movida a medicina alternativa, ecologia, liberdade sexual e consumo de drogas
leves. O PT da Vila Madalena
não é -vê-se agora- o de Zé
Dirceu, o de Carlito Maia não é o
de Duda Mendonça, nem mesmo
o de Marta é o de Eduardo.
Muitas heranças, em todo caso,
combinavam-se no PT. Mas há
uma que me surpreende. Quando
vejo as lideranças petistas falando em "denuncismo" e "governabilidade", é de uma herança nova
que se trata: a herança fernando-henriquista.
Com essa eu não contava. Digo
"fernando-henriquista" porque o
governo de FHC deu especial destaque a esses termos; serviam para abafar CPIs, para justificar
alianças com as oligarquias regionais, para sufocar as investigações do Ministério Público, para
descartar reivindicações legítimas, para desdenhar da imprensa e da sociedade civil.
É claro que não foi o governo
FHC que inventou essas práticas.
É claro que "governabilidade" e
"denuncismo" são palavras que
têm conteúdo real. O governo Lula emprega-as tão abusivamente
quanto o anterior. A herança, no
caso, não vem de FHC, mas de toda a longa história brasileira
-fundada no autoritarismo, na
tutela do Estado sobre a sociedade, na desconfiança do poder
diante do livre jogo das forças sociais.
Falei em "livre jogo das forças
sociais", e não "livre jogo das forças de mercado", como reza o
chavão do liberalismo econômico. Havia, por assim dizer, um "liberalismo social" ou um "antiestatismo" muito claros no PT, que
se aplicavam justamente sobre
aquelas áreas em que os liberais
de direita não gostavam de muita
conversa.
A aposta do PT era predominantemente antiautoritária. Tinha seu componente de risco, sem
dúvida: confiava-se numa espécie
de "aquecimento" do clima político do país, sem pensar muito nas
conseqüências para o fluxo de investimento estrangeiro ou para a
estabilidade da moeda, mas confiando em outro tipo de progresso.
O resultado mais positivo da
prática petista seria o de ampliar
a auto-organização da sociedade
e a transparência do Estado. Só
desse modo, aliás, questões como
a redistribuição de renda, a justiça social, o fim da discriminação
racial ou o respeito aos direitos
humanos poderiam, quem sabe,
não mais depender da boa vontade paternalista de um governo
qualquer.
Para alcançar o poder, Lula e
seus companheiros decidiram,
entretanto, não romper com uma
herança autoritária que -do cidadão humilde ao mais experiente consultor político- prefere a
"ordem" ao "progresso", o que
significa paternalismo em vez de
mobilização e mistificação propagandística em vez de esclarecimento político. Significa também
depender do bom humor do
"mercado", ressuscitar a Lei da
Mordaça e entregar-se a conchavos com as raposas de sempre. Tudo isso em nome da "governabilidade", contra o "denuncismo". O
governo FHC não faria melhor.
O governo Lula passa, todavia,
por vexames maiores. Desde o caso Larry Rother, a escalada contra a liberdade de imprensa me
parece clara. Chegamos à ironia
suprema de ver antigos defensores do regime militar criticando o
autoritarismo do governo e próceres do PFL gritando por um
maior reajuste do salário mínimo. Mais do que qualquer outra
coisa, o que o PT herdou, na verdade, foram os vícios e a sem-cerimônia de toda essa gente.
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