São Paulo, quarta-feira, 25 de agosto de 2004

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MARCELO COELHO

Stalinismo

Fala-se -com razão- na herança stalinista de vários membros do atual governo. É maior do que eu pensava. Não que eu esteja surpreso: os amores pelo regime de Cuba, as alianças com o PC do B, as tendências para o culto à personalidade em torno de Lula e para a rigidez na militância faziam-se sentir no PT havia bastante tempo.
Nunca me alarmei demais com isso. Também sempre foram muito fortes e caracteristicamente petistas a aposta na autonomia dos movimentos sociais, a crença numa democratização radical da sociedade, a obsessão ética, o velho "basismo" da sua organização -antídotos suficientes, a meu ver, contra o ranço totalitário.
Mesmo a impaciência, o imediatismo, a aversão do PT a táticas conciliatórias tinham mais de trotskistas, se quisermos, que de stalinistas. O estilo do PT não combinava com a pachorra de ocupar aos poucos a máquina do Estado, a aptidão para engolir sapos e o gosto pela política de bastidores, típica da esquerda obediente ao regime soviético.
Do ponto de vista da sua cultura política, pelo menos, o PT buscava muito mais situar-se no "lado da sociedade" do que no "lado do Estado". Já do ponto de vista de suas preferências econômicas, é claro que havia muito mais estatismo do que liberalismo no PT: mas a herança, aqui, nem precisa ser chamada de stalinista. Poderíamos igualmente chamá-la de varguista, desenvolvimentista, geiseliana, social-democrata, nacionalista ou corporativista, conforme a conveniência da argumentação.
Não falei da herança católica, nem do puritanismo "protestante" que coexistem no PT, ao lado da herança pós-68, movida a medicina alternativa, ecologia, liberdade sexual e consumo de drogas leves. O PT da Vila Madalena não é -vê-se agora- o de Zé Dirceu, o de Carlito Maia não é o de Duda Mendonça, nem mesmo o de Marta é o de Eduardo.
Muitas heranças, em todo caso, combinavam-se no PT. Mas há uma que me surpreende. Quando vejo as lideranças petistas falando em "denuncismo" e "governabilidade", é de uma herança nova que se trata: a herança fernando-henriquista.
Com essa eu não contava. Digo "fernando-henriquista" porque o governo de FHC deu especial destaque a esses termos; serviam para abafar CPIs, para justificar alianças com as oligarquias regionais, para sufocar as investigações do Ministério Público, para descartar reivindicações legítimas, para desdenhar da imprensa e da sociedade civil.
É claro que não foi o governo FHC que inventou essas práticas. É claro que "governabilidade" e "denuncismo" são palavras que têm conteúdo real. O governo Lula emprega-as tão abusivamente quanto o anterior. A herança, no caso, não vem de FHC, mas de toda a longa história brasileira -fundada no autoritarismo, na tutela do Estado sobre a sociedade, na desconfiança do poder diante do livre jogo das forças sociais.
Falei em "livre jogo das forças sociais", e não "livre jogo das forças de mercado", como reza o chavão do liberalismo econômico. Havia, por assim dizer, um "liberalismo social" ou um "antiestatismo" muito claros no PT, que se aplicavam justamente sobre aquelas áreas em que os liberais de direita não gostavam de muita conversa.
A aposta do PT era predominantemente antiautoritária. Tinha seu componente de risco, sem dúvida: confiava-se numa espécie de "aquecimento" do clima político do país, sem pensar muito nas conseqüências para o fluxo de investimento estrangeiro ou para a estabilidade da moeda, mas confiando em outro tipo de progresso.
O resultado mais positivo da prática petista seria o de ampliar a auto-organização da sociedade e a transparência do Estado. Só desse modo, aliás, questões como a redistribuição de renda, a justiça social, o fim da discriminação racial ou o respeito aos direitos humanos poderiam, quem sabe, não mais depender da boa vontade paternalista de um governo qualquer.
Para alcançar o poder, Lula e seus companheiros decidiram, entretanto, não romper com uma herança autoritária que -do cidadão humilde ao mais experiente consultor político- prefere a "ordem" ao "progresso", o que significa paternalismo em vez de mobilização e mistificação propagandística em vez de esclarecimento político. Significa também depender do bom humor do "mercado", ressuscitar a Lei da Mordaça e entregar-se a conchavos com as raposas de sempre. Tudo isso em nome da "governabilidade", contra o "denuncismo". O governo FHC não faria melhor.
O governo Lula passa, todavia, por vexames maiores. Desde o caso Larry Rother, a escalada contra a liberdade de imprensa me parece clara. Chegamos à ironia suprema de ver antigos defensores do regime militar criticando o autoritarismo do governo e próceres do PFL gritando por um maior reajuste do salário mínimo. Mais do que qualquer outra coisa, o que o PT herdou, na verdade, foram os vícios e a sem-cerimônia de toda essa gente.


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