São Paulo, sábado, 25 de agosto de 2007

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Análise 1

Ultradarwinismo chique de Dawkins explica tudo e nada de uma só vez

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

A sina de ultradarwinistas como Richard Dawkins é ter de explicar tudo com base na seleção natural, inclusive os moinhos de vento com que topa a ciência natural de grife em sua incursão pela árida paisagem intelectual contemporânea. Mesmo quando se propõem a desfazer miragens, vêem-se na obrigação de explicar antes como tamanho desvio da objetividade pôde escapar ao escrutínio da evolução.
Dawkins, ao investir contra a religião, submete-a a um rebaixamento duplo. Primeiro, recusa-lhe a condição de produto da cultura, seguindo o velho raciocínio sociobiológico (reciclado pela psicologia evolucionista) de que todo comportamento resulta da ação pretérita da seleção natural. Se existe, é porque no passado remoto da espécie conferiu algum diferencial de sobrevivência aos portadores dos genes para tal comportamento.
Em seguida, especula que se trate na realidade de um subproduto, fruto do mau funcionamento de um módulo cerebral selecionado para cumprir outra função. No caso da religião, uma espécie de desvario da tendência humana para atribuir intenções aos outros seres que povoam o mundo.
Imaginar que um tigre está mal-intencionado a seu respeito tem valor de sobrevivência, argumenta Dawkins. Aumenta suas chances de legar à próxima geração os genes que o levaram a acreditar numa consciência tigrina, algo empiricamente incorreto. Se os humanos estão predispostos a enxergar fantasmas dentro de tudo, fica mais fácil entender sua tendência universal a imaginar um fantasma-mor acima de tudo.
Não há uma seqüência lógica entre uma coisa e outra, entre a intencionalidade de "dentro" e a de "fora". Dawkins sobrepõe o que se chama de teoria da mente a uma tendência humana inata para o dualismo, conceber corpos separados de espíritos. Mas esse é só o prisma através do qual ele enxerga a questão, quando é plausível pensar de modo alternativo e encarar as péssimas intenções do tigre como algo indissociável de suas listas e dos olhos de fogo.
O biólogo ganharia em perspectiva se lesse também a obra do antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, mas já seria pedir demais. O próprio Dawkins reconhece (na pág. 183 da edição americana da Houghton Mifflin) que o nexo entre intencionalidade e dualismo é precário, e renuncia a aprofundar a matéria.
Há outras objeções possíveis contra o esquema de Dawkins. Uma digna de nota é tomar o monoteísmo, aparentemente, como tipo ideal para representar a miríade de fenômenos que se entende por "religião". Imperícia socioantropológica desculpável em um biólogo -se não estivesse empenhado em dar uma solução final ao problema da religião.
Dawkins tampouco tem explicação darwinista forte para essa infinita variação de religiões. Compara sua multiplicidade à proliferação aleatória de "memes", o análogo de genes na esfera da cultura, ao estilo da deriva genética (aumento da freqüência, numa população, de variantes que não conferem nem retiram vantagens para a sobrevivência). Cristianismo e islamismo, vistos de tal ângulo, seriam igualmente frutos de desenvolvimentos aleatórios.
É com efeito espantoso o poder explicativo do ultradarwinismo chique, em sua incursão pela árida paisagem intelectual contemporânea. Talvez explique a predileção desmesurada das casas editoras por autores como Dawkins, Steven Pinker e James Watson.


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