|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Análise 1
Ultradarwinismo chique de Dawkins explica tudo e nada de uma só vez
MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA
A sina de ultradarwinistas como Richard Dawkins é ter de explicar tudo com base na seleção natural,
inclusive os moinhos de vento
com que topa a ciência natural
de grife em sua incursão pela
árida paisagem intelectual contemporânea. Mesmo quando se
propõem a desfazer miragens,
vêem-se na obrigação de explicar antes como tamanho desvio
da objetividade pôde escapar
ao escrutínio da evolução.
Dawkins, ao investir contra a
religião, submete-a a um rebaixamento duplo. Primeiro, recusa-lhe a condição de produto da
cultura, seguindo o velho raciocínio sociobiológico (reciclado
pela psicologia evolucionista)
de que todo comportamento
resulta da ação pretérita da seleção natural. Se existe, é porque no passado remoto da espécie conferiu algum diferencial de sobrevivência aos portadores dos genes para tal comportamento.
Em seguida, especula que se
trate na realidade de um subproduto, fruto do mau funcionamento de um módulo cerebral selecionado para cumprir
outra função. No caso da religião, uma espécie de desvario
da tendência humana para atribuir intenções aos outros seres
que povoam o mundo.
Imaginar que um tigre está
mal-intencionado a seu respeito tem valor de sobrevivência,
argumenta Dawkins. Aumenta
suas chances de legar à próxima geração os genes que o levaram a acreditar numa consciência tigrina, algo empiricamente incorreto. Se os humanos estão predispostos a enxergar fantasmas dentro de tudo,
fica mais fácil entender sua tendência universal a imaginar um
fantasma-mor acima de tudo.
Não há uma seqüência lógica
entre uma coisa e outra, entre a
intencionalidade de "dentro" e
a de "fora". Dawkins sobrepõe o
que se chama de teoria da mente a uma tendência humana
inata para o dualismo, conceber corpos separados de espíritos. Mas esse é só o prisma através do qual ele enxerga a questão, quando é plausível pensar
de modo alternativo e encarar
as péssimas intenções do tigre
como algo indissociável de suas
listas e dos olhos de fogo.
O biólogo ganharia em perspectiva se lesse também a obra
do antropólogo brasileiro
Eduardo Viveiros de Castro,
mas já seria pedir demais. O
próprio Dawkins reconhece
(na pág. 183 da edição americana da Houghton Mifflin) que o
nexo entre intencionalidade e
dualismo é precário, e renuncia
a aprofundar a matéria.
Há outras objeções possíveis
contra o esquema de Dawkins.
Uma digna de nota é tomar o
monoteísmo, aparentemente,
como tipo ideal para representar a miríade de fenômenos que
se entende por "religião". Imperícia socioantropológica desculpável em um biólogo -se
não estivesse empenhado em
dar uma solução final ao problema da religião.
Dawkins tampouco tem explicação darwinista forte para
essa infinita variação de religiões. Compara sua multiplicidade à proliferação aleatória de
"memes", o análogo de genes
na esfera da cultura, ao estilo da
deriva genética (aumento da
freqüência, numa população,
de variantes que não conferem
nem retiram vantagens para a
sobrevivência). Cristianismo e
islamismo, vistos de tal ângulo,
seriam igualmente frutos de
desenvolvimentos aleatórios.
É com efeito espantoso o poder explicativo do ultradarwinismo chique, em sua incursão
pela árida paisagem intelectual
contemporânea. Talvez explique a predileção desmesurada
das casas editoras por autores
como Dawkins, Steven Pinker e
James Watson.
Texto Anterior: "EUA são vítimas da política religiosa" Próximo Texto: Peça sobre Darwin está em cartaz Índice
|