São Paulo, quarta-feira, 25 de agosto de 2010

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CRÍTICA DRAMA

"Com Quem Fica o Coração" configura criação antológica

Entre a comédia e a miséria humana, peça reflete maturidade de Paroni de Castro

LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA

O teatro de feira como grande arte. "Com Quem Fica o Coração", do Atelier de Manufactura Suspeita, tem a despretensão de divertir com recursos do Grand Guignol, mas realiza um inventivo diálogo com a cena contemporânea, pondo em tensão os limites entre o real e a ilusão.
O Grand Guignol é um gênero popular na França, que nasce no fim do século 19 em um pequeno teatro de Paris, como radicalização do drama naturalista, ousando trazer ao palco as figuras e o linguajar de prostitutas e de criminosos vulgares. Ao longo do século 20, e até a década de 1960, aquele espaço foi se tornando cada vez mais uma casa de horrores, aonde se ia para ver sangue e cabeças rolarem.
A encenação criada por Maurício Paroni de Castro parte dessas referências para extrapolar muito além dos efeitos especiais verossimilhantes, característicos daquela tradição e herdados e banalizados pelo cinema de terror hollywoodiano.
Prefere fabular, em registro aparentemente cômico, o grotesco de uma sanguinária dissecação de cadáver.
Como parte essencial da proposta, destaca-se a precariedade cênica e o tom casual dos atores. Ele se manifesta principalmente no trabalho de Carlos Meceni, gloriosamente retornando à cena com interpretação virtuosa.
Como o cirurgião corrupto que comercia órgãos, ele sustenta toda a ação dramática com fala mansa e a sugestão incisiva de uma contínua manipulação, invisível ao público, por meio de bisturis e algodões sangrentos.
Ao seu lado, o assistente, com perturbações mentais típicas dos personagens do Grand Guignol acometidos pela loucura. Josué Torres compõe com precisão o moço influenciado por um pastor evangélico e dividido entre as autópsias e a religião.
Terceiro elemento da trama, Janine Corrêa cumpre a difícil tarefa de encarnar a alma da mulher morta que está sendo dissecada. Ela está jogada na cena, de pé ao lado da mesa onde seus ossos estão sendo serrados. Nessa situação pouco confortável, a atriz se sustenta no implausível, desempenhando convicta uma crente devassa.
Criação coletiva, tributária grandemente dos atores e de sua capacidade de construir uma ficção potente com um mínimo de recursos, o trabalho reflete também a maturidade de Paroni de Castro como dramaturgo e encenador. Operando numa linha tênue entre a comédia e a miséria humana, o Atelier de Manufactura Suspeita concretiza uma criação antológica.


COM QUEM FICA O CORAÇÃO

QUANDO qui., às 21h30
ONDE teatro Ruth Escobar (r. dos Ingleses, 209, tel. 0/xx/11/ 3289-2358)
QUANTO R$ 30
CLASSIFICAÇÃO não informada
AVALIAÇÃO ótimo




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