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FESTIVAL DO RIO BR 2002
América desarmada
Filme de Michael Moore, uma das atrações da mostra que
começa hoje, questiona o belicismo da sociedade americana,
tendo a tragédia de Columbine como pano de fundo
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PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA
No grupo de cinco jornalistas
que entrevistava Michael Moore
em Cannes, um dia depois da exibição de seu filme "Tiros em Columbine" na competição do festival, havia um suíço. A entrevista
começou com papéis invertidos.
"É verdade que na Suíça os homens podem ter arma em casa?",
perguntou Moore. "Sim, se ele for
do Exército", disse o suíço. "Mas
em seu país a maior parte dos homens faz parte do Exército e, portanto, tem arma em casa", completou Moore, tendo a confirmação do jornalista. "Então como é
isso? Por que vocês não se matam
uns aos outros?"
A pergunta, retórica, ficou sem
resposta, mas deixou evidente a
questão de fundo de "Tiros em
Columbine": por que os americanos se matam uns aos outros? O
filme de Moore, que marcou a
volta do gênero documental à
competição de Cannes depois de
46 anos, começa questionando a
paixão pelas armas dos americanos, mas vai além: "Não fiz um filme sobre armas, mas sobre nossa
cultura do medo e como essa cultura nos leva a atos de violência,
interna e internacionalmente".
Ainda sem distribuição no Brasil, "Tiros em Columbine" é uma
das principais atrações do Festival
do Rio BR 2002, que começa hoje
no Rio de Janeiro. Recebeu, merecidamente, o prêmio especial do
55º aniversário do Festival de
Cannes. Com estréia marcada para outubro nos EUA, é forte candidato aos prêmios das associações de críticos, mas dificilmente
chegará ao Oscar, com seu tom altamente provocativo.
Diretor de "Roger & Me" e criador da série de TV "The Awful
Truth", Moore toma como ponto
de partida o trágico massacre de
20 de abril de 1999, quando dois
alunos da Columbine High
School de Littleton, Colorado, entraram armados no refeitório da
escola matando 12 pessoas e ferindo outras 23. Para explicar a tragédia, propõe correlações ousadas, incluindo em seu rol de entrevistados Charlton Heston (presidente da National Rifle Association) e o cantor Marilyn Manson,
entre tantos outros.
Folha - O senhor nasceu em Flint,
Michigan, Estado com alto índice
de armas por residência. Pode-se
dizer que conhece a cultura bélica
dos EUA de perto?
Michael Moore - Quando era
adolescente, eu me tornei sócio da
National Rifle Association, como
todos os meus amigos na época.
Tenho a carteirinha até hoje. A
NRA foi criada um pouco depois
da proibição da Ku Klux Klan, para defender a posse de armas como direito exclusivo dos brancos.
Durante um curto período de
tempo foi uma entidade que defendia o direito à caça controlada
de animais. Charlton Heston e
outras pessoas a tornaram de novo uma organização política de
direita. Além disso, cheguei a conhecer de vista Terry Nichols,
parceiro de Timothy McVeigh na
explosão de Oklahoma City, pois
ele estudou numa escola ao lado
da minha. E Eric Harris, um dos
assassinos de Columbine, passou
parte de sua juventude numa cidade colada a Flint, onde nasci.
Folha - O senhor já foi criticado
por usar humor para falar de assuntos sérios.
Moore - Muitos intelectuais de
esquerda não gostam do meu trabalho porque acham que apelo
para um humor bobo. Mas é assim que eu me comunico com as
pessoas. Um dos meus objetivos
principais é chegar aos jovens e
ser visto pelo maior número de
pessoas possível.
Folha - O senhor não confunde as
coisas quando mistura a violência
militar, patrocinada pelo Estado, e
a violência interna nos EUA?
Moore - Esse é o ponto, justamente. A meu ver há uma diferença grande e não há diferença nenhuma. São peças da mesma máquina. Obviamente não estou dizendo que, pelo fato de os pais dos
alunos de Columbine trabalharem na indústria que fabrica armas de destruição em massa, eles
são responsáveis pelo massacre
na escola. Não faço uma conexão
direta. Mas estou dizendo que, se
você vive numa sociedade que
afirma ser OK construir mísseis e
que é OK fazer o que fazemos como "americanos", não há uma
grande distância em dizer que a
violência é um meio legítimo.
Folha - E o que alimenta essa violência?
Moore - O medo. O medo faz
parte de nosso "DNA cultural".
Não sabemos diferenciar entre o
medo real e o medo fabricado. E o
fascismo aflora quando o povo está com medo.
Folha - Seu livro "Stupid White
Men", um manifesto bem-humorado contra Bush, ficou meses na lista
dos mais vendidos nos EUA. A que
atribui esse sucesso?
Moore - Eu o escrevi achando
que ninguém compraria, mas a
resposta foi impressionante, o
que significa que existem milhões
de americanos que concordam
comigo. Depois do vexame das
eleições, Bush só conseguiu aprovação de fato depois de 11 de setembro, porque qualquer grupo
social atacado se refugia em seu líder, não importa quem seja esse
líder. Mas Bush está muito longe
de ter sido um presidente querido
e eleito legitimamente.
Folha - A National Rifle Association já se pronunciou em relação a
seu filme?
Moore - Não, mas estou esperando reações fortes depois da estréia
nos EUA. Os sócios do NRA são
muito agressivos. Não são do tipo
que aceitam críticas.
Folha - Depois que você filmou
Charlton Heston, ele tentou impedi-lo de usar o material no filme?
Moore - Não, mas quando ia
saindo de sua casa, me deparei
com o portão trancado. E ninguém aparecia para abrir. Pensei
que eles tinham chamado alguém
para tirar o filme da gente. Mas
havia dois amigos meus do lado
de fora do portão. Liguei para
eles, tirei o filme da câmera, joguei
por cima do muro e disse para
irem embora. Depois de um tempão, o portão abriu.
Folha - O senhor deixou algum
material de fora do filme?
Moore - Tem uma ótima história
que filmei durante dois anos, sobre um garoto que foi expulso da
escola depois do massacre de Columbine porque fez uma piada.
Ele disse algo como "bem que a
gente podia fazer um Columbine
aqui na escola". Foi expulso e processado por tentativa de homicídio como um adulto. Tem 11 ou 12
anos. Talvez essa história vire um
outro filme.
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