São Paulo, quarta-feira, 25 de setembro de 2002

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MÚSICA

Biográfico e polêmico, o independente "Na Humildade" é o primeiro disco da carioca, "quase irmã" de MV Bill

Nega Gizza dá voz feminina ao rap do país

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

O rap brasileiro enfim tem voz feminina. Chega às lojas "Na Humildade", CD de estréia da carioca Nega Gizza, 25. Independente, o disco inaugura o selo Dum Dum, dirigido por Gizza com seu protetor e quase irmão MV Bill.
A artista precisou de discurso de choque para conseguir se impor e chegar à MPB de disco. Ele vem a reboque do polêmico rap "Prostituta", em que Gizza escreve/canta: "Sou puta, sim/ vou vivendo do meu jeito/ prostituta atacante, vou driblando o preconceito".
Ela diz que a letra é biográfica, mas não autobiográfica: "Havia uma pessoa que eu conhecia que virou prostituta, e eu não me conformava com aquilo. Me colocar como prostituta na letra foi uma necessidade que tive de sentir aquilo na pele. Pensei "pára, eu sou puta, tenho que me colocar'".
Fala sobre as reações a seu rap: "As pessoas ficam meio assustadas, tenho que ficar me explicando. Sinto que as pessoas são preconceituosas ao falarem disso. Não enxergam que isso está na mulher que faz programa de TV quase nua, na que posa para a "Playboy", na que casa com cara de alta sociedade ou na que trabalha num prostíbulo. O Brasil tem que repensar até que ponto vai a prostituição, o modo como as crianças estão sendo criadas".
O impacto de "Prostituta" abriu caminho para a construção de um disco inteiro, que conta com o apoio e a participação de produtores do pop (Dudu Marote) e do rap (Zé Gonzales e Ganja Man). A sequência de letras em primeira pessoa se avolumou, sempre abordando a realidade de comunidades marginalizadas do Rio.
De "Neném", ela fala, em voz baixa, que é plenamente biográfica e conta a história de seu irmão: "De como ele se envolveu com o tráfico, foi preso e morreu, há quatro anos. Daí vem a história da minha irmandade com MV Bill, que trabalhou junto com meu irmão e me apoiou quando eu estava muito deprimida com o que aconteceu. Bill me ajudou a renascer, virou meu irmão", afirma.
Fala de outros pontos autobiográficos em "Na Humildade": "Cada letra tem coisas que vi acontecendo dentro da minha família, da minha comunidade, da sociedade. "Depressão", "Larga o Bicho" e "Original" são assim. Vivi e fiz aquelas letras". Nas vinhetas "Caminhada" ela conta outra parte de sua história: "A comunidade do Parque Esperança surgiu de uma invasão. Invadi com minha família quando eu tinha 13 anos, moro lá até hoje. Paulinho, nosso líder comunitário, está correndo atrás da legalização da área".
Se sua militância pelo rap (no feminino, sempre) se intensifica a cada dia, nem por isso ela descuida da autocrítica, que expressa na letra que diz "o rap não é perfeito/ assumo meus preconceitos".
"No meio do rap existe preconceito também, com relação à mulher por exemplo. Minha intenção é que as mulheres se identifiquem comigo, a partir do que sou. Estamos sempre protestando, o que não quer dizer que estejamos na perfeição. O papel do rap é mostrar a realidade, que nem sempre é justa".
Se a realidade não é, ela faz coro com MV Bill ao desconfiar da realidade traduzida para a ficção no filme "Cidade de Deus", co-dirigido por sua amiga e diretora Kátia Lund. "Vivi na Cidade de Deus, na época com o Bill. Não quero falar muito sobre isso, mas o filme é triste para a comunidade, com tudo o que a gente tem lutado. A gente precisa entrar com os benefícios para a comunidade, não afundá-la mais ainda".
O resultado de seu discurso, por ora, parece ser o mesmo que ela diz sentir da abordagem crua que deu a "Prostituta": "Tento fazer as pessoas pensarem comigo, mas não encontrei respostas ainda". Mas Gizza está na procura.



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