|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"O ENIGMA DE QAF"
Autor elabora narrativa com texto seco e frases elegantes
Alberto Mussa tece lenda árabe na trilha de Borges
BERNARDO AJZENBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA
Ao publicar "Elegbara", em
1997, o escritor carioca Alberto Mussa assinou o livro com
seu sobrenome, mas usou como
prenome o apelido. A passagem
do Beto de então para o Alberto
de agora, em "O Enigma de Qaf",
indica, porém, bem mais do que
uma simples opção estética ou
uma improvável crença na numerologia.
"Elegbara" (um dos nomes de
Exu) trazia curtas narrativas de
temática afro-brasileira, misturando personagens e fatos reais
com relatos fictícios. A busca pela
pureza da fábula, em Mussa, aparecia, aí, de forma "diabamente
eficaz", como escreveu Antônio
Houaiss (1915-1999) ao prefaciar
aquela obra.
Essa dicção autoral que exalta
sobretudo o poder imaginário do
enredo -com chance para o mistério e para um contido e refinado
humor-, voltou a se manifestar
no segundo livro, "O Trono da
Rainha Jinga" (1999). Premiado
pela Biblioteca Nacional, este explora temática semelhante à do
primeiro e elege como cenário o
Rio de Janeiro do começo do século 17.
Em "O Enigma de Qaf", Mussa,
43, altera o universo de seus relatos. Eles versam, agora, sobre a
cultura árabe pré-islâmica: sua
poesia, mitologia, sua riqueza histórica e literária, suas ambigüidades tão propícias ao mundo da
ficção. Mas a mudança não se limita a isso.
Alternando uma novela cujo
narrador é um estudioso daquela
literatura (seu nome é... Alberto
Mussa), em especial do poeta al-Ghatash, com pequenos capítulos
chamados pelo autor de excursos
("narrativas mais ou menos relacionadas com a intriga dominante") ou parâmetros ("lendas de
heróis árabes comparáveis ao
protagonista e poetas como ele"),
o livro representa um amadurecimento em relação aos anteriores.
Mantém-se o apego a uma ficção de tendência nitidamente
borgiana, transitando com erudição entre o visto e o inventado,
entre o irônico e o cruel. Tudo isso
para reconstituir a lenda de al-Ghatash, o poeta aventureiro que
"cruzava o deserto em busca de
uma mulher desconhecida, de um
enigma relacionado a uma fabulosa montanha circular, de um gênio caolho e cego que podia viajar
no tempo".
Aprofunda-se com nitidez, porém, a sequidão do texto, a elegância e o ritmo das frases. Mussa
exibe, aqui, uma elaboração mais
compacta, ensejando aquilo que,
na apresentação, o escritor Antônio Torres classifica como uma
"peregrinação literária (que) resulta numa prosa poética de rara
beleza, entrecortada por ensinamentos sobre um antigo e vasto
Oriente".
Um exemplo, extraído do capítulo "Sin", que, como todos os demais da "intriga" central, carrega
o nome de uma das 28 letras do alfabeto árabe (inclusive o "Qaf"):
"Saí do templo e fui selar a camela. No caminho do deserto,
cruzei o acampamento da tribo de
Salih, cada vez mais ávidos pelo
sangue dos Ghurab. Uma mulher,
com tatuagens pelas mãos e pelo
rosto, meio encoberta sob a tenda,
mostrou-me os dentes com malícia. Olhei para a alegria da moça
com desesperança".
Em "O Enigma de Qaf", Mussa
se solidifica como um autor sofisticado que, além de elevar na forma o nível médio da produção literária atual no Brasil, amplia, para o bem dessa mesma produção,
os seus horizontes temáticos.
Bernardo Ajzenberg é autor de "A
Gaiola de Faraday (Rocco) e "Variações
Goldman" (Rocco), entre outros, e assessor executivo do Instituto Moreira Salles.
O Enigma de Qaf
Autor: Alberto Mussa
Editora: Record
Quanto: R$ 29,90 (268 págs.)
Texto Anterior: Rodapé: A nau da contracultura Próximo Texto: "Duas Histórias": Conrad revela naufrágio da civilização Índice
|