São Paulo, sábado, 25 de setembro de 2004

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"O ENIGMA DE QAF"

Autor elabora narrativa com texto seco e frases elegantes

Alberto Mussa tece lenda árabe na trilha de Borges

BERNARDO AJZENBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ao publicar "Elegbara", em 1997, o escritor carioca Alberto Mussa assinou o livro com seu sobrenome, mas usou como prenome o apelido. A passagem do Beto de então para o Alberto de agora, em "O Enigma de Qaf", indica, porém, bem mais do que uma simples opção estética ou uma improvável crença na numerologia.
"Elegbara" (um dos nomes de Exu) trazia curtas narrativas de temática afro-brasileira, misturando personagens e fatos reais com relatos fictícios. A busca pela pureza da fábula, em Mussa, aparecia, aí, de forma "diabamente eficaz", como escreveu Antônio Houaiss (1915-1999) ao prefaciar aquela obra.
Essa dicção autoral que exalta sobretudo o poder imaginário do enredo -com chance para o mistério e para um contido e refinado humor-, voltou a se manifestar no segundo livro, "O Trono da Rainha Jinga" (1999). Premiado pela Biblioteca Nacional, este explora temática semelhante à do primeiro e elege como cenário o Rio de Janeiro do começo do século 17.
Em "O Enigma de Qaf", Mussa, 43, altera o universo de seus relatos. Eles versam, agora, sobre a cultura árabe pré-islâmica: sua poesia, mitologia, sua riqueza histórica e literária, suas ambigüidades tão propícias ao mundo da ficção. Mas a mudança não se limita a isso.
Alternando uma novela cujo narrador é um estudioso daquela literatura (seu nome é... Alberto Mussa), em especial do poeta al-Ghatash, com pequenos capítulos chamados pelo autor de excursos ("narrativas mais ou menos relacionadas com a intriga dominante") ou parâmetros ("lendas de heróis árabes comparáveis ao protagonista e poetas como ele"), o livro representa um amadurecimento em relação aos anteriores.
Mantém-se o apego a uma ficção de tendência nitidamente borgiana, transitando com erudição entre o visto e o inventado, entre o irônico e o cruel. Tudo isso para reconstituir a lenda de al-Ghatash, o poeta aventureiro que "cruzava o deserto em busca de uma mulher desconhecida, de um enigma relacionado a uma fabulosa montanha circular, de um gênio caolho e cego que podia viajar no tempo".
Aprofunda-se com nitidez, porém, a sequidão do texto, a elegância e o ritmo das frases. Mussa exibe, aqui, uma elaboração mais compacta, ensejando aquilo que, na apresentação, o escritor Antônio Torres classifica como uma "peregrinação literária (que) resulta numa prosa poética de rara beleza, entrecortada por ensinamentos sobre um antigo e vasto Oriente".
Um exemplo, extraído do capítulo "Sin", que, como todos os demais da "intriga" central, carrega o nome de uma das 28 letras do alfabeto árabe (inclusive o "Qaf"):
"Saí do templo e fui selar a camela. No caminho do deserto, cruzei o acampamento da tribo de Salih, cada vez mais ávidos pelo sangue dos Ghurab. Uma mulher, com tatuagens pelas mãos e pelo rosto, meio encoberta sob a tenda, mostrou-me os dentes com malícia. Olhei para a alegria da moça com desesperança".
Em "O Enigma de Qaf", Mussa se solidifica como um autor sofisticado que, além de elevar na forma o nível médio da produção literária atual no Brasil, amplia, para o bem dessa mesma produção, os seus horizontes temáticos.


Bernardo Ajzenberg é autor de "A Gaiola de Faraday (Rocco) e "Variações Goldman" (Rocco), entre outros, e assessor executivo do Instituto Moreira Salles.

O Enigma de Qaf
   
Autor: Alberto Mussa
Editora: Record
Quanto: R$ 29,90 (268 págs.)



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