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MEMÓRIA
Uma vida sonhando com a literatura
BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS
Quando Françoise Sagan publicou "Bom Dia Tristeza" ("Bonjour Tristesse"), eu era adolescente. Pela sua musicalidade, o título
nunca me saiu da cabeça. Conheci
essa mulher que foi um grande
mito da minha geração no começo dos anos 90. Não foi fácil encontrá-la. Telefonei pedindo uma
entrevista para a Folha. A secretária sugeriu que eu escrevesse a
madame Sagan. Escrevi e fiquei
um bom tempo esperando a resposta positiva que, enfim, chegou.
No dia marcado, a secretária me
fez entrar só para me dizer que a
escritora não estava disponível
pois acabava de perder um amigo.
Embora decepcionada, eu entendi. Um mês depois, a entrevista foi
remarcada, e ela me recebeu na
sala do seu apartamento da rue de
l'Université, que era grande e despojado, apesar dos muitos quadros nas paredes e de um luxuoso
piano preto de cauda. O vazio, a
pintura e a música, além dos dois
olhos baços de Sagan.
A razão da entrevista era o último livro dela. E contava com toda
a minha simpatia, pois no livro,
além de retratar algumas grandes
personalidades -Ava Gardner,
Catherine Deneuve, Federico Fellini e Mikhail Gorbatchev- ela
fazia a apologia do riso, afirmando que no gosto do riso existe generosidade e inocência.
Perguntei o que significou ter
publicado "Bonjour Tristesse"
aos 18 anos e ter se tornado célebre, o que a glória havia trazido a
ela de positivo e o que havia lhe
custado. "De positivo, o fato de
que me livrou do desejo do sucesso. Todo mundo quer ter sucesso
quando faz alguma coisa. Eu tive,
e muito, de modo que não sonhei
mais com ele. De negativo, só o fato de que me privou da possibilidade de estar incógnita nos lugares", respondeu.
Quis saber com o que ela então
passou a sonhar e a resposta me
encantou: "Eu sonhava com a literatura e continuei a sonhar com
ela, com a possibilidade de escrever um livro sublime. Como Stendhal, Proust, Dostoievski, Hemingway, Fitzgerald".
Respirei fundo a literatura com
que ela sonhava e voltei a "Bonjour Tristesse", que eu havia relido um pouco antes com a alegria
de redescobrir um livro que ousou colocar em cena o desejo incestuoso de uma mulher e, nesse
sentido, foi precursor.
Sagan o escreveu nos cafés do
Quartier Latin e na Sorbonne, durante as aulas. De sorbonícola ela,
aliás, não tinha nada. Ser livre era
a sua vocação profunda. Quando
eu perguntei o que era a liberdade
a resposta foi: "Querer o que a
gente pode, como dizia Sartre".
Acrescentou que era inútil procurar a liberdade. Que ela simplesmente acontece. "Um dia, a gente
encontra alguém e se sente livre."
No fim da entrevista, ela me falou do riso, considerando que
"rir, apesar disso ou daquilo, é
uma coisa boa e que é preciso ter
coragem para tanto".
Sagan, que só queria entrar para
a Academia Francesa de Letras
para não ter mais problemas com
a polícia -por causa do consumo
de morfina, depois do álcool-,
deixou de estar entre os vivos aos
69 anos e entrou para a constelação dos que são grandes porque
estão comprometidos com a amizade, com o riso e com a arte.
Betty Milan, escritora e psicanalista, é
autora de "O Clarão" e "A Paixão de Lia",
entre outros livros.
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