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NELSON ASCHER
Rola delenda est
Para que se possa falar em civilização, Roma precisa ser apagada de nossa memória coletiva
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SEMANA PASSADA , falei da magnífica série "Roma", da HBO.
Entre muitas observações que
não tive espaço de acrescentar, está
a de que sua qualidade se deve a ter
sido co-produzida pela BBC, bem
como ao elenco quase exclusivamente anglo-irlandês. Sei que meus
amigos cinéfilos (aqueles segundo
os quais há um só Godard no Céu e
ninguém mais nesta pobre Terra
abandonada) discordam veementemente de mim, mas, para quem, como eu, aprecia, nas obras cinematográficas ou televisuais sobretudo, os
elementos literários e dramáticos
-isto é, a narrativa, o roteiro, os diálogos, o trabalho de atores e atrizes-
, a média do que se tem feito nas
Ilhas Britânicas sempre me pareceu
superior ao restante. E "Roma" o
confirma.
Mas não é disso que quero falar
agora.
Roma, do período que vai do apogeu da república (logo após derrotar
Cartago na terceira e última Guerra
Púnica), passando pela Guerra Civil
e o primeiro glorioso século de principado ou monarquia -que equivale
mais ou menos ao primeiro século
da era cristã-, foi sempre considerada o exemplo máximo de país, nação ou império bem-sucedido, aquele no qual os seguintes, fossem os
medievais (o Sacro Império Romano Germânico), os modernos (os
impérios napoleônico e britânico)
ou recentes (a república imperial
norte-americana de que falava Raymond Aron), inspiraram-se.
E esses se inspiraram não apenas
no que diz respeito aos detalhes
mais óbvios de seu expansionismo
territorial, pois a herança da organização interna daquela cidade na península italiana foi reaproveitada
por inúmeros países em áreas tão
distintas como o direito, a construção de estradas, a arquitetura, a administração e o planejamento urbano. Em suma, Roma, a rigor, jamais
caiu de fato, perpetuando-se de maneiras diversas, entre as quais as artísticas e, a partir do século passado,
as cinematográficas.
Tampouco deixa de ser verdade,
porém, que, para a minha geração,
esses 300 anos de apogeu romano
pareciam menos excitantes do que
haviam sido para nossos pais e avós.
Júlio César e Marco Antônio, Cícero
e Otávio, para nem falar de Catão,
Scipião etc., gente absolutamente
familiar para eles, nos interessavam
menos do que personagens anteriores ou posteriores. Após ler os livros
convencionais da adolescência,
aqueles que estavam em voga quando cheguei à universidade falavam
mais sobre os gregos. A filosofia desses, as contradições da cidade-estado, novas descobertas a respeito de
sua religião e sobre a origem dessa
no Oriente, novas traduções e leituras dos poetas trágicos e dos historiadores e, é claro, revelações arqueológicas que nos davam a impressão de entender aquele universo melhor do que seus habitantes
originais -tudo isso ajudou a Grécia
a eclipsar, pelo menos temporariamente, Roma.
E, mesmo no caso de Roma, os estudos de ponta chamavam antes a
atenção para períodos ou assuntos
insuficientemente abordados antes.
O que acontecia no centro passou
para o segundo plano, uma vez que
algumas das questões mais fascinantes que se colocavam diziam respeito às fronteiras do império. Sua
transição do paganismo para o cristianismo passou a ocupar também
mais tempo de leitura do que as
campanhas militares nas Gálias ou
os elefantes de Aníbal. E as intermináveis indagações acerca das causas
da queda do império deram lugar,
por sua vez, a uma exploração mais
minuciosa de quanto o sucedeu.
A que se deve tal desinteresse, até
mesmo súbito, por um assunto que
havia sido tão constante? Todos os
que se interessavam por Roma em
seu apogeu sentiam-se, em certa
medida, seus herdeiros, se não diretamente (como sucessores étnicos),
decerto como portadores de uma
idéia de civilização, em especial de
uma civilização centrada numa cidade que se contrapunha de forma
ativa à barbárie além de suas muralhas. Isso envolvia uma noção que
diferenciasse claramente a civilização da barbárie e a certeza de que,
não obstante nossas falhas, nós representávamos a primeira.
Tamanha autoconfiança se tornou primeiro impopular, logo suspeita e, finalmente, condenável. À
desconfiança de que nós também
somos bárbaros, sobreveio a certeza
de que apenas nós é que somos, enquanto os outros são apenas nossas
vítimas civilizadas. Assim, para que
a observação de Walter Benjamin,
de que não há documento de civilização que não seja também documento de barbárie, possa ser reduzida à sua segunda metade, a glória
que foi Roma precisa ser apagada de
nossa memória coletiva.
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