São Paulo, segunda-feira, 25 de setembro de 2006

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NELSON ASCHER

Rola delenda est


Para que se possa falar em civilização, Roma precisa ser apagada de nossa memória coletiva

SEMANA PASSADA , falei da magnífica série "Roma", da HBO. Entre muitas observações que não tive espaço de acrescentar, está a de que sua qualidade se deve a ter sido co-produzida pela BBC, bem como ao elenco quase exclusivamente anglo-irlandês. Sei que meus amigos cinéfilos (aqueles segundo os quais há um só Godard no Céu e ninguém mais nesta pobre Terra abandonada) discordam veementemente de mim, mas, para quem, como eu, aprecia, nas obras cinematográficas ou televisuais sobretudo, os elementos literários e dramáticos -isto é, a narrativa, o roteiro, os diálogos, o trabalho de atores e atrizes- , a média do que se tem feito nas Ilhas Britânicas sempre me pareceu superior ao restante. E "Roma" o confirma.
Mas não é disso que quero falar agora.
Roma, do período que vai do apogeu da república (logo após derrotar Cartago na terceira e última Guerra Púnica), passando pela Guerra Civil e o primeiro glorioso século de principado ou monarquia -que equivale mais ou menos ao primeiro século da era cristã-, foi sempre considerada o exemplo máximo de país, nação ou império bem-sucedido, aquele no qual os seguintes, fossem os medievais (o Sacro Império Romano Germânico), os modernos (os impérios napoleônico e britânico) ou recentes (a república imperial norte-americana de que falava Raymond Aron), inspiraram-se.
E esses se inspiraram não apenas no que diz respeito aos detalhes mais óbvios de seu expansionismo territorial, pois a herança da organização interna daquela cidade na península italiana foi reaproveitada por inúmeros países em áreas tão distintas como o direito, a construção de estradas, a arquitetura, a administração e o planejamento urbano. Em suma, Roma, a rigor, jamais caiu de fato, perpetuando-se de maneiras diversas, entre as quais as artísticas e, a partir do século passado, as cinematográficas.
Tampouco deixa de ser verdade, porém, que, para a minha geração, esses 300 anos de apogeu romano pareciam menos excitantes do que haviam sido para nossos pais e avós. Júlio César e Marco Antônio, Cícero e Otávio, para nem falar de Catão, Scipião etc., gente absolutamente familiar para eles, nos interessavam menos do que personagens anteriores ou posteriores. Após ler os livros convencionais da adolescência, aqueles que estavam em voga quando cheguei à universidade falavam mais sobre os gregos. A filosofia desses, as contradições da cidade-estado, novas descobertas a respeito de sua religião e sobre a origem dessa no Oriente, novas traduções e leituras dos poetas trágicos e dos historiadores e, é claro, revelações arqueológicas que nos davam a impressão de entender aquele universo melhor do que seus habitantes originais -tudo isso ajudou a Grécia a eclipsar, pelo menos temporariamente, Roma.
E, mesmo no caso de Roma, os estudos de ponta chamavam antes a atenção para períodos ou assuntos insuficientemente abordados antes. O que acontecia no centro passou para o segundo plano, uma vez que algumas das questões mais fascinantes que se colocavam diziam respeito às fronteiras do império. Sua transição do paganismo para o cristianismo passou a ocupar também mais tempo de leitura do que as campanhas militares nas Gálias ou os elefantes de Aníbal. E as intermináveis indagações acerca das causas da queda do império deram lugar, por sua vez, a uma exploração mais minuciosa de quanto o sucedeu.
A que se deve tal desinteresse, até mesmo súbito, por um assunto que havia sido tão constante? Todos os que se interessavam por Roma em seu apogeu sentiam-se, em certa medida, seus herdeiros, se não diretamente (como sucessores étnicos), decerto como portadores de uma idéia de civilização, em especial de uma civilização centrada numa cidade que se contrapunha de forma ativa à barbárie além de suas muralhas. Isso envolvia uma noção que diferenciasse claramente a civilização da barbárie e a certeza de que, não obstante nossas falhas, nós representávamos a primeira.
Tamanha autoconfiança se tornou primeiro impopular, logo suspeita e, finalmente, condenável. À desconfiança de que nós também somos bárbaros, sobreveio a certeza de que apenas nós é que somos, enquanto os outros são apenas nossas vítimas civilizadas. Assim, para que a observação de Walter Benjamin, de que não há documento de civilização que não seja também documento de barbárie, possa ser reduzida à sua segunda metade, a glória que foi Roma precisa ser apagada de nossa memória coletiva.


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